Se eu morresse amanhã – fulminada por um raio, debaixo de uma enchente, atropelada por um caminhão, ou uma overdose acidental de ansiolíticos tarja preta – gostaria que as minhas cinzas fossem deixadas em vários lugares diferentes. Para dar mais trabalho, é claro. Jogar no mar, no Parque do Ibirapuera ou no jardim da casa da infância são bonitinhos, mas eu sou canceriana, para mim tem que ser algo dramático, grandiloquente.
Quem sabe próximo à pista onde aprendi a patinar no gelo aos seis anos em Campos do Jordão, a grande atleta das Olimpíadas de Inverno que nunca fui sendo velada por todos. Tocaria o tema de “Castelo de Gelo” e toda a cerimônia seria conduzida por Svetlana, Ikatierina, ou alguma daquelas russas que parecem ser penduradas por cordinhas de marionetes que vemos na televisão.
Outra parte poderia ser deixada na sede do Ballet Bolshoi, onde nunca pus meus pés calejados de tanto dançar. Baryshnikov poderia recuperar o viço dos vinte anos e dançar o Dom Quixote, enquanto o leque de Quitéria polvilhava meus restos mortais pelo maior palco do ballet mundial.
Uma terceira parte – vejam só meu peso atual, vai ter cinza pra danar – poderia ser jogada nos bolsos de um sobretudo inglês e deixada para afundar no onde Virginia Woolf foi encontrada, para atingir em morte a profundidade woolfiana que nunca consegui. J. K Rowling poderia carregar minha ânfora até lá, para ter em morte a resiliência para a rejeição que nunca tive.
Outra ideia seria jogar tudo ao vento do topo de uma montanha alta e verdejante e Bob Marley poderia fazer as honras, para me dar a leveza de não se preocupar e ser feliz que nunca atingiEle poderia queimar um pouquinho delas com um baseado, que também nunca experimentei.
Também poderia ser espalhada pela cidade onde nasceu Shakespeare, carregada em cortejo sobre uma pilha de suas obras completas por Julian Barnes, para absorver, na morte, a inspiração que me faltou em vida. A música poderia ser a nona Sinfonia de Beethoven, cantada por um coral de centenas de membros.
Quem sabe também poderia ser uma cerimônia religiosa, em homenagem às minhas origens, aos judeus poloneses, pobres e perseguidos, obrigados a tomarem um navio e viajarem para o desconhecido da América Latina. Um grande rabino conduziria a cerimônia em hebraico – ficaria lindo, apesar de eu não falar uma palavra de hebraico – e as cinzas ficariam metade na igrejinha onde meu bisavô foi registrado, no interior da Polônia do Pré-Guerra e a outra metade na Terra Prometida. Tudo louvando os meus antepassados que se perderam com o holocausto e aos tantos judeus que mudaram o mundo, cientistas, pensadores, escritores, músicos, Freud, Benjamin, Einstein, Woody Allen, Philip Roth... Espera, judeus podem ser cremados?
É, eu sei, a modéstia não é meu forte. Mas em nossos diminutos universos pessoais, por mais altruístas que queiramos ser, quem é a pessoa mais importante? Gostaria de ser leve como o vento, de ter a agilidade dos bailarinos, a combinação de visão, estilo erudição e ignorância dos grandes escritores, de ter composto grandes sinfonias, de ter escrito grandes livros, ou, ao menos, de ter conseguido não levar aquele tombo na pista de gelo e quebrado o cóccix aos 12 anos. Por que minha falta de notoriedade não poderia ser celebrada? Afinal, Van Gogh nunca vendeu um quadro em vida. Quem sabe um dia, ao abrirem meu computador e encontrarem todos os textos secretos, que são só meus, com tudo o que não conto nem mostro a ninguém sejam abertos – por cima o meu cadáver – e não se descubra ali um gênio póstumo da literatura? Disso, infelizmente, nunca saberei. De qualquer forma, a grande artista que sempre quis ser ainda não sou. F
Ficar então com as pequenas conquistas pessoais, que nada têm de conquistas se pensarmos bem, parece-me mais adequado. Talvez o jardim da casa de Campos do Jordão, que trouxe tanto do mundo às minhas mãos, tanto desse mundo que apreendo por palavras, por sensações, já que incapaz de ver grande parte dele. Bem naquele cantinho onde nasceu aquele cogumelo vermelho de pintinhas brancas colhido pela minha mãe só para me mostrar como era um de verdade. Naquele cantinho onde colocávamos armadilhas para passarinhos e de onde tentávamos descer rolando pelo barranco sem nos machucarmos. Onde passeei com minha cachorrinha filhote pela primeira vez, onde fui beijada pela primeira vez, onde levei um fora pela primeira vez. Onde brinquei e briguei com amigos, onde pulei e adormeci, onde engatinhei e caminhei me equilibrando sobre botas de salto alto.
A música poderia ser a do Fantasma da Ópera, tão popular para casamentos. Nunca me importei com clichês e minha amada professora de música poderia cantar, com sua voz querida (mesmo que eu saiba que detesta músicas dessas que viraram som de espera telefônica), ela que me ensinou tanto além das notas, escalas e acordes. É infeliz que essa música tenha se tornado chavão de casamentos, pois O Fantasma da Ópera abriu minha paixão pelo teatro, por inventar histórias, por construir mitos sobre mim e sobre o mundo, na tentativa de entende-los melhor e mascarar todas as fraquezas, todos os defeitos: tentar ser notório para não ser medíocre, digno de pena. É pena que também o brilhante se torne banal, tão banal que é brega, sem graça.
Acho que meus amigos e família poderiam ganhar todos um pequeno torrão de mim, o Rafael, a Gabriela, a Débora, o Caio, meus pais, meus avós e o Antônio, pois devo a cada um deles cada sorriso e cada lágrima, cada aprendizado , cada fracasso e vitória que tive. E vou parando por aí, se não o rivotril que acabei de tomar vai parar de fazer efeito e vou acabar chorando cântaros feito uma boboca de TPM em propaganda de margarina.