domingo, 21 de janeiro de 2018

Resenha: "Toda a Luz que Não Podemos Ver", de Anthony Doerr

nos empenhamos tanto e gastamos tanto tempo e energia com coisas, a princípio, tão inúteis como ler um romance de Júlio Verne, tocar a Clair de Lune no piano, e nos indagarmos sobre como funciona o organismo de um caramujo e o porquê de o céu ser azul? Afinal, existem pessoas morrendo de fome, guerras são travadas, terrorismo, racismo, desastres naturais… Por que nos damos ao trabalho? Não há coisas tão mais importantes? Esta é a questão que perpassa “Toda a Luz Que Não Podemos Ver”, publicado em 2014 por Anthony Doerr e vencedor do prêmio Pulitzer na categoria de “ficção”.




     Com um título um tanto piegas – talvez fruto da tradução –, o romance não atrai à primeira vista. A protagonista, Marie Laure, uma garota completamente cega que vive com seu pai em Paris às vésperas da Segunda Guerra Mundial, parece insípida e amedrontada. O leitor anseia, sim, na primeira metade do livro, pelos capítulos concentrados em Werner, um garoto de cabelos tão claros que parecem brancos vivendo em um orfanato na Alemanha do III Reich.
     A reconstituição histórica da Alemanha nazista é magistral. Vemos a desumanização do preparo militar alemão, que trata cada ser humano como mero número, descartando sem cerimônia aqueles que não seguem o padrão de exigência e não atingem a produtividade esperada.
     A sensibilidade é desencorajada. Uma infinidade de livros é proibida, assim como a leitura de jornais e a audiência de programas de rádio não oficiais. Curiosidade, piedade e empatia são fraquezas. Os militares alemães devem funcionar como maquinas de precisão. De fato, uma personagem secundária muito interessante construída por Doerr é Volkeimer, um general nazista assustador, digno dos filmes mais clichês sobre a Segunda Guerra. Porém sua psiquê é primorosamente elaborada em toda a sua secura e (ao menos aparente) insensibilidade.
     Já no lado dos aliados, Marie Laure quer trazer todo o mundo para a ponta de seus dedos. Seu pai trabalha em um museu de história natural e a garota passa os dias perambulando por seus corredores, satisfazendo sua imaginação e aprendendo com os funcionários sobre os artefatos em exposição. Mesmo com a invasão de Paris e a subsequente fuga, uma das coisas que mais sente falta é de seu enorme volume em Braille, presente do pai por seu último aniversário.
     À cegueira é atribuída uma conotação interessantíssima. Marie Laure é extremamente curiosa e, por não poder ver, precisa que lhe expliquem sobre as coisas mais simples, como o mar, a paisagem da cidade, as fachadas dos prédios, animais menos comuns que qualquer criança conheceria das ilustrações de um livro e até o brilho de pedras preciosas. Marie entende tudo através de conceitos, que se cruzam em seu cérebro, abrindo o mundo inteiro para ela. Tudo o que não pode ver, desde a praia do lado de fora de sua janela em Saint Malo, até criaturas abissais nas profundezas do oceano sobre que lê: ela tem em sua mente, em seu micro universo.

Vista de Saint Malo, cidade litorânea localizada na Bretanha (França),
onde se passa parte decisiva do romance de Anthony Doerr


     A escrita de Doerr é envolvente; suas descrições, delicadas e sensíveis, sem exageros dramáticos. A secura é usada nos pontos certos e o derramamento, comedido e habilmente quantificado. A estrutura em capítulos curtos, alternando em vários pontos de vista segue a “moda”, mas nem por isso o romance perde o ritmo, mesmo com suas mais de 600 páginas. O autor intercala à história na ordem direta vislumbres do momento de clímax, artifício que, provavelmente, conferiu a cadência irresistível da narrativa, instigando a leitura.
     “Toda a Luz Que Não Podemos Ver” é um exemplo muito sensível da ficção histórica, que busca, muito além de traçar um retrato do período por meio de narrativas de ficção individuais, um objetivo poético, explorando questões ligadas à importância da imaginação para a sobrevivência humana, à maneira dura e superficial como vemos o mundo, especialmente em momentos de crise, e à necessidade do povoamento interior do ser humano, da criação de um universo pessoal que não está no mundo ao alcance dos nossos olhos, sim, talvez, no plano das palavras e da fantasia.