De: Audrey Priestly <audreypriestly@yahoo.com.br>
Para: mhfs2000@uol.com.br
3 de fevereiro de 2013, 21:27
Assunto: Domingo
Para: mhfs2000@uol.com.br
3 de fevereiro de 2013, 21:27
Assunto: Domingo
Hoje
fui até a Quinta Avenida. Pesquisei tudo antes de sair de casa, usando a
internet das asiáticas. Quer dizer, minha internet! Pelo amor de Deus, por que
eu continuo pensando assim? O apartamento é um terço meu! De qualquer forma, queria
pelo menos olhar para as coisas bonitas que eu compraria quando tivesse algum
dinheiro. Afinal, nenhum diretor de casting vai trabalhar domingo.
Sentei
no vagão e vi as estações passarem correndo, os cartazes de filmes, peças,
musicais, anúncios de pasta de dente, sapatos, viagens, remédio para insônia.
As máquinas de refrigerante e porcarias, e conforme as estações foram se
aproximando do centro, máquinas de livros. Os corredores pretos se alternavam
com as estações brilhantes e coloridas, nos por seu caminho único, sem desvios.
Pessoas entravam e
saíam. Pessoas de todas as cores. A minha estação chegou, as portas se abriram.
A moça cega com o labrador desceu. As portas apitaram. mas não me levantei. O
trem continuou. Dizem que a maioria dos trens não tem mais um maquinista,
funcionam automaticamente, com pausas, avisos e aberturas de portas programados.
Essa força maior me levou até o fim da linha.
Os passageiros foram
avisados para descerem na última estação. Meu corpo não respondeu ao comando.
As luzes se apagaram. Ninguém deu pela minha presença. O trem começou a voltar,
fazendo o mesmo percurso, mas na ordem inversa – como uma bola de basquete
atirada para o alto, que, em algum momento, fará o mesmo caminho na ordem
inversa, puxada pela força inexorável
para baixo. Meu corpo pesava como se minha pele fosse feita do mesmo material
que aqueles coletes pesados e muito maleáveis que se coloca para tirar
radiografias dentárias, como quando você me levava tantas vezes para acertar a
minha mordida cruzada e os dentes encavalados. Nem 12 anos eu tinha, mas era
melhor corrigir logo mesmo, antes que eu começasse a fazer testes. Diretor nenhum
me colocaria em nada com aqueles dentes.
Pensei
em como eu nunca conseguia sentar no metrô em São Paulo. E aqui eu estava
sentada! Precisava aproveitar. Tentei o dia todo me lembrar da última vez em
que passei pela Estação da Sé sentada. Acho que isso nunca aconteceu.
Olhei de esguelha no caminho de volta,
andando de costas, de volta para o bairro que agora tenho que chamar de meu. Reconheci
a estação que eu estava, bem no meio do Times Square. Tenho a imagem exterior
dessa estação grudada na minha mente, porque foi um dos primeiros lugares a que
fui aqui, na época do intercâmbio. Eu estava bem embaixo daquele lugar. De
repente aquele amontoado de prédios e pessoas e anúncios e mendigos e turistas
e teatros e lojas e palcos e atores e efeitos especiais… tudo pesava sobre a
minha cabeça. Quis descer, só andar por ali outra vez, apesar de já ter ido
ontem e antes de ontem. mas quando relanceei para a porta, ela já estava se
fechando. Mexi pouco mais que as mãos no gesto de pendurar melhor a bolsa no ombro
e me levantar do assento precioso no vagão.
Andei até o
fim da linha e voltei. De novo. Já tinha feito isso uma vez em São Paulo, só de
brincadeira, quando a mãe da Luciana deixou ela andar de metrô sozinha pela
primeira vez. Não sei se você se lembraria, mas foi marcante pra mim, por algum
motivo. Achei que aqui eles fossem mais rígidos, mas ninguém deu a mínima para mim,
exatamente do mesmo jeito. Vi o trem se esvaziar e entrar manobrar, depois
voltar no sentido oposto. Eu continuei sentada na poltrona de veludo velho. Era
como se meu mundo tivesse pausado, minha cabeça funcionando em círculos, em
túneis escuros em que se passa muito rápido, dentro de um vagão de metal, para
não ver o que há no subsolo horrendo da cidade dos sonhos.
Alguma
coisa me despertou do meu transe. Talvez alguém esbarrando em mim, talvez uma
criança qualquer gritando aguda por cima do barulho das máquinas... Não sei
quantas voltas dei no metrô. Sei que já estava escuro quando voltei para casa.
Isso não quer dizer muita coisa, porque escurece às 4 da tarde no inverno. Mas
perdi o dia inteiro.
Na minha
caixinha de fósforos, deitei na cama sem nem tirar os sapatos e fiquei olhando
para o teto, traçando as rachaduras em volta da lâmpada amarela solitária,
observando o movimento de uma aranha. Eu tenho pavor de aranhas, mas não
consegui encontrar em mim forças para matar aquela.
Quando ouvi
o interfone tocar, me sentei na cama. Domingo à noite o tal Jack sempre aparece
para assistir um jogo na TV a cabo daqui. Ele é mestiço de asiático e negro,
pelo que pude distinguir, e fala inglês. Gostaria que ele não falasse, porque
toda vez que me vê faz alguma piadinha suja, ou passa a língua cor-de-rosa nos
lábios, quase salivando. Eu mantenho minha cabeça reta, o olhar duro, como foi
ensinada a fazer ao passar na frente de construções com roupas de balé em São
Paulo. Uma hora vai perder a graça. Ou ele vai acabar vindo aqui quando estou
sozinha e me estuprando. Mas, de qualquer jeito, quem se importaria?
O toque do
interfone significa que estava perto das 8 da noite. Talvez um sexto sentido
que me mantém mais alerta na presença do “predador”, me fez sentar rápido na
cama e bati a cabeça na prateleira acima dela. Está latejando até agora. Ótimo,
não é? Agora além de tudo tenho um roxo enorme na testa. Os produtores de
casting vão achar ainda mais exótico. A única coisa que pude pensar em fazer
foi escrever aqui. Estou vazia feito um tubo de pasta de dente, espremida,
retorcida, e só sai ar de dentro de mim. Daqui a pouco, vou estar tão espremida
que nem ar vai sair. É como se eu fosse um robô que alguém não precisa mais,
esquecido num canto, com as baterias prestes a acabar e que continua executando
tarefas pré-programadas indefinidamente. Sem vontade, sem consciência,
inesgotavelmente tentando agradar.
E esse foi
o meu dia.