Sozinha
na sala de ensaio, Amanda desdobrou a camisa de dentro da sacola de papel do
brechó e a ajeitou num cabide para ver o efeito com o resto do figurino de
Edmond. Sim, perfeito. Maldita hora a da decisão de montar uma versão teatral feminista
de Mansfield Park, de Jane Austen,
com figurinos de época e adereços expressionistas seria uma boa ideia. Amanda e
seu elenco tinham passado todo o mês anterior cavando em todos os locais
imagináveis, à procura de todos os elementos que tornariam a obra completa. Uma
semana para estrearem e faltava a desgraçada da camisa do mocinho. Agora podia
respirar.
Ela
ajeitou as mangas bufantes e tentou visualizá-las nas suas cenas construídas
com tanto método. Estava orgulhosa de seu achado. Esperava que o tamanho fosse
correto para a atriz; sua companhia era rígida em compor-se só de mulheres.
Mas
observando bem, a coisa não parecia autêntica de verdade. Velha e amassada,
sim, meio amarelada, mas não produzida nos idos de 1800. E aquele bolsinho era
mesmo esquisito. Quando foi que começaram a usar bolsinhos no lado esquerdo do
peito nas camisas masculinas? Suzana saberia esse tipo de coisa. Suzana era a
encarregada oficial dos figurinos do grupo. Bem, não apareceria nada debaixo do
colete de qualquer forma.
Ela
alisou o tecido enrugado e sentiu alguma coisa dentro do bolso. Era um pedaço
de papel, dobrado tantas vezes que formava quase uma bolinha compacta. Amanda o
abriu, e as palavras quebraram sobre ela:
Não posso precisar a hora, ou o
local, ou o olhar, ou as palavras que lançaram as fundações. Foi muito tempo
atrás. Eu estava no meio antes que soubesse ter começado.
B.
Amanda
percebeu que estivera segurando a respiração e soltou o ar. Reconhecia a frase
de Orgulho e Preconceito, claro, o
grande cliché de Jane Austen. A frase não estava entre aspas. Quem quer que
tivesse escrito sabia que o destinatário a reconheceria, sem necessidade de
marcas, ou DE colocar a referência entre parênteses; uma burocracia de trabalho
escolar. Ou mesmo não quisesse que a frase fosse reconhecida, poderia ter
pretendido que se pensasse ser da sua autoria.
Estava
assinado B. Quem era B? Beto, Bruno, Bento, Bruna, Beatriz,
Benedito,
Brenda, Benício... Ou poderia ser um sobrenome, ou mesmo um apelido. E o que
estava fazendo dentro do bolso daquela camisa ridícula? O dono a tinha recebido
ou TINHA escrito, sem nunca reunir a coragem para entregar para a outra pessoa?
Com o
instinto afiado para construir personalidades a partir de pistas vagas do
treinamento de atriz, tentou analisar a letra. Era bonita e inclinada, talvez
feminina, pelo jeito antigo e caprichado de traçar as maiúsculas. Mas estava
escrito em tinta de caneta azul, então não deveria ser assim tão velha. Quando
foi que inventaram as esferográficas? Cada palavra era esmerada, desenhada com
perfeição, como se pintada no papel com uma deliberação há muito calculada. O
B, no entanto, parecia diferente, um pouco mais gordo e tosco. Dava para dizer
que era uma letra masculina, só esse B da assinatura. Mas de algum jeito não
parecia ter sido escrito por uma pessoa diferente.
Bem, a
pessoa usando a camisa poderia não ser um homem, no fim das contas. Poderia ser
um disfarce, ou, o que era mais provável, alguém atuando em uma peça,
exatamente como as suas atrizes. Mas estava sendo idiota! Não era ela uma
feminista? Uma mulher não poderia ter uma letra com aparência masculina? Oras,
sua própria letra era quase ilegível.
B de
Bennett, como Jane, Lizzie, Mary, kitty e Lydia, as irmãs casadouras do Derbyshire,
todas mulheres, todas diferentes, todas à procura de algo. Tanto vinha pensando
sobre Austen e as mulheres de Austen e, bem ali, caíam em suas mãos as palavras
de Austen. O chão emitia vibrações erráticas contra os calcanhares descalços,
todo o mundo de repente grande demais para ela, insignificante como uma irmã
Bennett bastarda.
Sem
aviso, Suzana apareceu pela porta, carregada com sacolas e malas contendo o
restante dos adereços que faltavam.
– Ai
meu Deus, essa camisa é perfeita demais! – Suzana exclamou sem se dar ao
trabalho de cumprimentar. Amanda foi rápida e enfiou o bilhete no bolso da
calça. E voltou a atenção para o tagarelar da companheira.
Foi para
casa bem depois da meia-noite, fisicamente exausta, mas com a mente a dar
saltos. Encontrar aquele bilhete de amor assim, de repente, a tinha movido,
embora não soubesse bem explicar o porquê. Já fazia tanto tempo que vira
qualquer coisa assim na vida real, que tinha esquecido que não existiam só em
entretenimento romântico barato de TV aberta. De qualquer jeito era um bilhete
antigo. Era óbvio que hoje em dia aquele tipo de melosidade era tão real quanto
posts de mídias sociais com declarações de amor. Um clique e puff! Sumiu da
face da Terra.
Diferente
dos admiradores de Austen mais incautos, Amanda não acreditava em amor. Pensava
ser o amor uma mera maneira de passar o tempo enquanto viva. Se existiam coisas
como almas gêmeas, pessoas destinadas a ficarem juntas, qual era a chance de
encontrá-la nas multidões do mundo? Se tanta gente clamava ter se unido com o
parceiro por amor, se tantos dos seus amigos, familiares e colegas faziam
declarações para a pessoa amada a cada data pré-marcada no calendário, como é
que poderia haver tantos malditos sortudos no mundo?
Sua
teoria era assim: essa coisa que as pessoas chamavam de amor não era o que elas
imaginavam ser. Esse arrepio de magia Disney era só uma transferência de
energia. Se um cidadão minimamente adequado cruzava o caminho de outro cidadão
minimamente adequado em uma hora propícia – hormônios, humores, carências,
complexos de édipo... – e interagisse da maneira correta, haveria atração.
Claro, atração imediata, do tipo tiro e queda. Tudo predisposição psicológica e
desejo animal de procriar, tudo uma questão de probabilidade, como tirar a bola
certa na esfera do jogo de bingo.
Havia chegado
a essa convicção após se apaixonar pelo professor de História aos 17 anos. Sua
mãe tinha descoberto e a levado para uma terapeuta. Depois de várias tentativas
de se conectar com ela, exausta, a terapeuta tinha concluído que Amanda
funcionava de maneira diferente das outras adolescentes: uma casca de
racionalidade, com um recheio de algodão doce. Ela havia lhe dado um texto
sobre projeções e transferências, um sobre relações de poder e um terceiro
sobre o fascínio erótico que o professor pode inspirar. Amanda não apareceu na sessão
seguinte, envergonhada de si mesma.
Mas
ainda não foi então que a sua crença se estabeleceu. Havia chamado
“apaixonar-se” o que se passou no primeiro ano da faculdade. Ele estudava
Filosofia, ela, Teatro, conversavam até o sol sair, bebiam e iam a festas. Ele
cuidou dela quando ficou doente, ela cuidou dele quando seu avô morreu. EO sexo
era intenso; eles iam a peças experimentais, a protestos políticos, a leituras
de poesia feminista. Ele se formou e Amanda tinha certeza que era a hora de pôr
em prática tudo o que vinham fantasiando há tanto tempo: ele seria professor
universitário, ela faria teatro, um apartamento aconchegante em um bairro cheio
de gente alternativa, um cachorrinho adotado, maconha na gaveta do banheiro e
talvez uma criança, que eles educariam para ser inteligente, respeitosa,
artística e com tendências políticas de esquerda. A vida perfeita, desenhada
para eles em um oásis particular.
Mas a
metade da sua laranja veio até ela e disse que havia decidido se mudar para o
outro lado do país e estudar Direito. Era hora de crescer. E se ele quisesse
algum dia ser alguém no mundo, precisaria de uma namorada que não passava os
dias fazendo macaquices para uma plateia em troca de alguns trocados. Precisava
de alguém que soubesse se vestir e como se comportar na frente de gente importante,
alguém que o apoiasse em tudo.
Mas Amanda
não o apoiava em cada desejo seu? Ela entrou em depressão. Ela quase largou a
faculdade de Teatro e foi estudar alguma coisa mais sensata. Ela quase se
tornou uma professora de francês triste e abandonada, como sua mãe, que a
criara sem um pai. Foi então que leu todos os romances de Jane Austen e
descobriu o quanto aquela história de feminismo era mais profunda.
Amanda
jurou para si mesma que nunca mais teria um relacionamento fofura na vida. Ela
descobriu também que podia se sentir atraída por garotas – e elas eram tão mais
fáceis! Que alívio! Ela não podia negar, porém, que se tivesse que escolher
entre um homem com a aparência de Marlon Brando em Um Bonde Chamado Desejo e uma mulher com a aparência de Ava Gardner
em Vênus, Deusa do Amor, sem saber nada sobre eles, para uma única
noite de prazer, escolheria ele e não ela. Esse era mais um dos seus segredos,
um que guardava junto com os livros de Jane Austen na última gaveta do criado
mudo.
– Isso
é sério, Amanda? Jane Austen?
– Sim,
por que não?
Sentadas
no chão da sala de ensaio que lutaram tanto para adquirir, as garotas de Amanda
tinham se entreolhado, algumas tinham rido de nervoso. Estavam acostumadas ao
desprezo que ela sempre demonstrava pelo realismo estético e por qualquer coisa
convencional. Costumava propor sátiras de Bernard Shaw ou montagens brechtianas
provocativas, ou vinha com ideias um pouco desatinadas para performances
subversivas. Com uma energia raivosa toda sua, Amanda gostava de desafiar tudo
o que era convencional.
– Você
não odeia esses melodramas bregas e empoeirados? Que porcaria a gente vai
discutir em uma história de um cara que é preconceituoso e uma garota que é
orgulhosa... Ou é ao contrário?
– Isso
não é Orgulho e Preconceito,
Michelle. Austen escreveu seis romances inteiros. Esse é Mansfield Park. Bem diferente.
– Nunca
li. Achei que você não estava interessada nesse tipo de coisa também.
Amanda inspirara
com profundidade, buscando a explicação racional que havia elaborado mentalmente
para aquele momento. – Bom, achei que poderíamos atrair o público com o nome da
autora de que tanta gente gosta e transmitir uma mensagem contemporânea. A
posição da mulher na sociedade, o capitalismo das relações românticas... O de
sempre. Tem uma parte bem grande sobre escravidão também. Achei que a gente
poderia expandir isso simbolicamente em cena.
Ninguém
disse nada.
Amanda tinha
mergulhado em uma dissertação sobre relações amorosas, citando Simone de
Beauvoir, Judith Butler, Hegel. Encouraçava-se dos pensamentos de outros,
defendendo-se do olhar hostil das outras.
–
Século XIX ou não, – Michelle comentou quando a diretora fez uma pausa para
respirar. – Acho que dar um jeito de casar com o macho rico deve ser o melhor
tipo de casamento hétero que é possível.
Até Amanda havia sorrido. Muito
debate foi preciso para que conseguisse fazer prevalecer seu desejo.
Na última semana antes da
estreia, o dia seguinte a deparar-se com B em um bolso de uma camisa velha
cafona, Amanda acordou cedo e correu outra vez para o metrô. Dessa vez, para
dar aulas de teatro em uma escola de subúrbio. Ensinar crianças era a segunda
coisa que gostava mais de fazer em sua vida profissional. Abrir as mentes
desses sujeitinhos em projeto e vê-los florescer era tão gratificante que tinha
o poder de curar qualquer angústia da sua vida pessoal. As meninas, em
especial. mas naquele dia foi diferente.
Quando
precisou pensar num tema para os alunos criarem uma cena improvisada, viu-se descrevendo
uma situação em que encontravam um bilhete de amor dentro de uma camisa de
brechó. O resto era com eles. Quinze minutos.
Amanda
se sentou em uma cadeira com o encosto quebrado no corredor e ajustou o timer
do celular. Estava tão aérea que precisava da retidão do relógio para não se
deixar levar para dentro de si. O bilhete ainda estava no bolso da calça. Ela
sentia uma urgência de reabri-lo e estudar outra vez as letras incriminadoras.
Mas seria um caso se algum dos alunos viesse fazer uma pergunta e visse o
bilhete. Aquelas palavras pareciam íntimas demais para serem vistas por
qualquer pessoa que não ela.
Afinal,
para quem B estava escrevendo? Um homem, uma mulher, um companheiro com quem
tivera uma briga e o bilhete tinha a intenção de fazer as pazes? Ou era uma
declaração de amor de verdade? Ou mesmo uma piada interna? Não, não podia ser
uma piada. Toda a vastidão do sentimento condensado naquele pedacinho de papel,
toda a força que deve ter acarretado para ser escrito, toda a coragem que deve
ter custado para entregá-lo... e depois o quê? O que tinha acontecido? Qual era
o próximo passo?
E Jane
Austen. Mulher maldita! Não podia ficar quieta no seu túmulo de virgem? Não
podia ficar imóvel no passado? Não podia se limitar a pintar retratos sociais
do seu tempo para as gerações futuras verem como viviam, do que se alimentavam
e como se reproduziam homo sapiens habitantes do campo inglês do século XIX?
Por que tinha que ficar surgindo na vida de Amanda, sempre observando, sempre
espreitando no limite entre luz e sombra, sempre vindo apertar o coração dela
com unhas fortes demais, sempre a forçando-a a explicar-se por que aquela parte
doce ainda existia nela – a parte que tanto queria renegar e jogar fora? Alguém
tinha arrastado aquela parte para o proscênio, debaixo de holofotes agressivos,
forçando-a a vê-la, não importava o quão vergonhoso pudesse ser: a forma de uma
camisa velha horrorosa com um bilhete de amor ridículo esquecido dentro.
–
Amanda, – falou uma vozinha da outra ponta do corredor. Ela tinha instruído
seus alunos a chamá-la pelo primeiro nome. Sem relações de poder ou
transferências, ou aura erótica do professor. Não em nenhuma sala de aula dela.
– A gente terminou!
Amanda
se levantou e caminhou de volta para o espaço vazio da sala de aula com as
carteiras empurradas para o canto, esperando que as crianças soubessem lhe dar
uma pista de como continuar; agora, com B em sua vida.