Olga
recebeu um “descurtir”. Mário deixou de seguir Olga. Mário saiu da conversa.
Olga não tem notificações. Tem certeza de que deseja apagar as mensagens
armazenadas desta conversa? Em “Dias de Abandono”, o que mais choca é a
casualidade de um abandono impessoal, que deixa um vazio à frente, como se
fosse tão simples quanto deletar uma pessoa de sua vida quanto o é de apaga-la
das redes sociais.
A
protagonista Olga tem um relacionamento superficial com o marido Mário, duas
personagens vastíssimas, como não poderia ser diferente, já que provém da mente
da autora mistério, Elena Ferrante. A família feliz: marido, mulher, dois
filhos, um pastor alemão que, se não fosse o livro dos anos 1990, teria um
Instagram próprio. Ele é engenheiro, ela cuida da casa, mas quer mesmo ser
escritora, embora não se sinta firme para fazer nenhuma das duas coisas.
Desacreditada, competência desnecessária, e desresponsabilizada pelo mundo. Até
o belo dia em que o marido, com quem sempre tivera uma relação de jogar os
problemas para baixo do tapete, lhe comunica sem cerimônia que vai deixa-la. E
em seguida vai brincar com o cachorro.
Li a
obra de Elena Ferrante de trás para a frente: comecei pelas amigas napolitanas
que causaram estrondo em todo o mundo e recentemente voltei-me para os três
romances anteriores, menos conhecidos e um tanto diferentes. Cada vez mais
tenho certeza de que a italiana misteriosa não se trata de uma escritora
feminista, rótulo que ela mesma recusa no volume mais recente que reúne suas
cartas e poucas entrevistas concedidas. A autora é capaz de pinçar o ser mulher
que todas compartilhamos. É por esse motivo a minha admiração: a ausência total
de ideologia, ou panfletagem, ou relato de caso para encaixar-se em uma teoria
de outro.
A voz
de Ferrante tampouco é homogênea. Houve até boatos, já que sua identidade é
oculta, sobre sua obra ser o esforço conjunto de não uma, mas várias pessoas.
Não creio que seja o caso. É possível distinguir mecanismos e palavras de uma
só pessoa em suas páginas. O que parecemos esquecer é que quem escreve não é
Elena Ferrante, sim sua personagem, qualquer que seja o grau de similaridade
entre elas. O pacto da ficção é firmado: essa história é fruto da imaginação
desta mulher que assina a capa. Ponto final. Sendo cada livro um raio X de uma
mulher drasticamente diferente, suas falas haveriam de o ser também, não?
Voltando
a Olga: essa mãe, filha e esposa se vê de repente caindo em um abismo, embora
não haja precipício em que possa se atirar, nem trilhos de trem sobre os quais
se prostrar para esperar ser dilacerada. A vida sem o marido a deixa pendente,
como um vestido velho pendurado, esquecido no armário. Teme virar uma
solteirona como aquelas da sua infância, teme esquecer a panela no fogo e
explodir a casa com os filhos dentro, teme especialmente o cachorro, que foi
aquisição do marido e agora também abandonado recai sobre ela. “Dias de
Abandono” é um relato irretocável da confusão que se instaura na vida de uma
mulher quando não tem um homem a que ser anexa, nem um modelo em que se
inspirar para seguir. Eles, ao contrário, encontram outra para arrumá-lo, fazer
sua comida, mimá-lo; trocam, como se diz de maneira infame, uma de 40 por duas
de vinte, e seguem trabalhando, transando e delegando responsabilidades.
Talvez
este texto esteja contaminado com um pouco de ranço anti-masculino, mas a
verdade é que Olga não conhece o marido. Ela escolhe ter uma visão embaçada
dele, com as falhas obscurecidas. Ela pensa conhecer cada canto empoeirado de
sua personalidade, mas nunca sequer sonhou com a possibilidade de uma amante.
Interessante é que o tal marido só saiu de casa, abandonando os dois filhos
(meros detalhes, formalidades chatas do divórcio) só quando já tem outra já
engatilhada. Olga diz que nunca o amou tanto quanto no momento em que teve de
desamá-lo, arrancá-lo de dentro de si como o duplo de um órgão vital.
Talvez
os rodopios da alma de Olga cansem um pouco ao leitor. Mas eles cansam até a
ela mesma, que não consegue executar tarefas simples como destrancar a porta
porque se distrai em meio ao rodamoinho que a puxa para dentro de si. Ela pede
à filha que a espete com o abridor de cartas toda vez que achar que ela está
“meio boba”. As piruetas da consciência que relatam ao leitor sua história
pregressa, suas lembranças de vários pontos no tempo, fantasias, espécies de
alucinações com a vizinha da infância, com a mãe, com o cachorro, com o vizinho
de agora... e de repente o espeto do abridor de cartas! Tudo dá uma sensação de
sufocamento, de estar presa em um buraco alto demais para se alcançar a borda, estreito,
onde mal dá para se mexer.
Um
livro mais intimista e com menos elaborações peripatéticas que a média da
autora – a tetralogia Napolitana chegou a ser chamada de “folhetim” por alguns
críticos – mas fascina da mesma forma. Acho que um homem poderia não
compreender como tanta coisa pode caber em uma só pessoa. Tantas dúvidas,
tantas personalidades, tantas loucuras, tantos sentimentos flutuantes e nem por
isso menos apaixonados. Mas, na crista da nova onda feminista, nós, mulheres,
entendemos completamente.
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