quinta-feira, 29 de março de 2018

Crônica: Biblioteconomia de Si


              No meu aniversário de um ano, meu avô era precursor: com sua magnífica câmera filmadora novíssima (de VHS, claro, lembrando que estamos na virada dos anos 80 para 9_ fez um super making of do meu dia de princesa. Por trás daqueles números branco brilhantes marcando a data e a hora (erradas, claro), minha mãe e minha avó me acordam (de mal humor, claro). Elas me põem no trocador e o único jeito de eu me animar para aparecer bem no filme é me mostrar um livrinho com figuras do Mickey Mouse e sua turma.
              A bebê cresceu uns vinte e uns anos e se tornou uma viciada em livros. A Victoria está sempre lendo. Todo mundo que me conhece sabe. E nesses vinte e uns anos foi uma coleção de livros acumulados que é melhor nem comentar. Resolvi organizá-los, o que jamais aconteceu na história deste país.



              Ordem alfabética? Por autor ou por título? Por gênero, é melhor. Vou dividir em “Clássicos”, “Teóricos” e “O Resto”. Ok... Shakespeare, Homero, Curso de Linguística Geral, Jogos Vorazes. Nabokov é clássico? Realmente preciso ler aquele livro do Coetzee sobre os clássicos... Aliás, CADÊ!? Achei, ufa... Nabokov é clássico. Ponto. Ish, ao lado da Simone de Beauvoir... Bom, dane-se. Virginia Woolf, Victor Hugo, Cervantes. Mein Kampf... Jesus Cristo onde eu classifico o livro do Hitler? É meio clássico, mas acho que Kafka ficaria ofendido. Vai pro Resto. Mas Primo Levi está no Resto! Não, não posso fazer isso! Tá, vai junto com os Teóricos, afinal, ninguém lê isso por prazer, só como um documento histórico. Ai meu Deus, Freud, Walter Benjamin, Philip Roth, ANNE FRANK!!!
              Ninguém mandou ter o livro do Hitler também, né. Mas percebem o problema? Vi uma vez em um filme um personagem que organizava os seus muitos livros partindo do princípio de quais teriam dormido com quais. Comecei a pensar como seria isso nos meus livros. Sartre e Simone juntinhos. Depois Clarice, que ia gostar da Simone. Cervantes e Flaubert – muito papo de travesseiro sobre Emma e o cavaleiro da Triste Figura. Capote com Benjamin! Isso ia dar um sexo selvagem. Game of Thrones... Gente, será que esse velho já pegou alguém na vida? Ah, Philippa Gregory! Uma pegada medieval. Marion Zimer-Bradley e Diana Gabaldon vão junto, podem fazer um grupal. Pensando bem, tira o Martin. As damas históricas merecem um cavalheiro à altura. Um autor bem gatão... Ish, não tenho nenhum do Nicholas Sparks. Bom, ainda bem! Anne Frank com Nabokov e Lewis Carroll um de cada lado. Ai, que maldade...  
E os teóricos como faz? Aaah, Saussure... Saussure, você vai ver...
              É divertido pensar nisso, mas não é prático. E imagina o tempo que eu ia demorar pra shipar minha biblioteca desde o livrinho do Mickey?! Não, categorias gerais e ordem alfabética, igual na Florestan lá na USP. Mas isso é tão chato... E se for por lidos e não lidos? Olha! O livro da minha colega do da faculdade! Preciso ler. E O Pintassilgo!!! Queria tanto reler...
              Esse último critério foi que me botou pra pensar. Relanceei para a pilha de lidos atrás de mim. Estava quase despencando. Meu Deus, quanto tempo da minha vida eu já gastei lendo isso tudo?! Bem, não gastei, ganhei. E esses todos não lidos do outro lado! Uma pilha quase tão grande. A impressão que tenho é de que, quanto mais eu leio, mas há para ler. É como uma hidra de hércules, já na fase Hard da luta.
              No meio de um monte de livros de sebo, encontrei Fahrenheit, de Ray Bradbury. Meu coração se apertou. E se queimassem tudo aquilo? É pior do que se queimassem minha casa, pior que se meu país entrasse em uma guerra civil sangrenta, pior que se eu fosse parar em um campo de concentração nazista. Queimar todos os meus livros seria queimar quem eu sou, quem eu fui e quem eu posso vir a ser em alguns anos.
              Classificar seus livros é como fazer análise: colocar cada coisa em seu  lugar, manusear os livros antigos cheio de orelhas que já sabe quase de cor, abrir or novos e esquecidos para ver se ainda têm aquele cheirinho de livraria, decidir o que fazer com aqueles menos favoritos que por algum motivo você ainda mantém - todas as experiências – sim, porque eu já estive em uma guerra civil, em um incêndio, em um campo de concentração nazista, até em Camelot e Westeros – é uma busca sem fim, um enredo quixotesco de perseguir um coelho branco que está sempre fugindo nas sombras estranhas do país de dentro de mim.
              No fim, coloquei todos misturados do jeito que estavam mesmo. Da próxima vez que for procurar um livro, vou fechar os olhos e deixar os dedos encontrarem a próxima experiência a viver ou reviver. A vocês, bibliófilos caóticos, eu entendo. Completamente.

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