domingo, 29 de abril de 2018

Por que diabos esse gato, Victoria?!




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Ok, hoje aconteceu. Uma pessoa me perguntou por que o blog se chama “Gato Sorridente”. Acho que a maioria das pessoas já viu o desenho da Disney de 1950, “Alice no País das Maravilhas”, certo? Algumas outras pessoas podem ter lido os livros de Alice do autor inglês (e com uma fixação ligeiramente bizarra por essa menininha loira e curiosa filha de seu colega professor de Oxford), Lewis Carroll. Gatos não riem, certo? Mas o gato do País das Maravilhas sorri. E ele também é roxo e rosa e muito metido a safado. Eu adoro o Gato da Alice! Inclusive, ele olha para a minha cara de uma prateleira alta no meu quarto todos os dias com esse sorriso maroto e essa expressão “aí, qual é a boa de hoje?”


Como uma boa leitora iniciada pelo gênero da fantasia juvenil, na minha transição para leitora madura, li os livrinhos de Carroll com menos de 15 anos e adorei, mesmo que só fosse entende-los em toda a sua profundidade depois, na faculdade de Letras. Mas é mesmo com o desenho que eu tenho uma conexão forte. Acho que Alice no País das Maravilhas é um dos filmes mais injustiçados da Disney. Ele tem tão poucos fãs e é uma criação tão, bom, maravilhosa. Eu e minha mãe sabemos esse filme quase inteiro de cor e temos uma citação de Alice para quase qualquer situação (que só nós entendemos, o que gera situações meio estranhas de nós duas falando frases aparentemente sem nexo na frente de outras pessoas).


Ah sim, e tem minha mãe. Como uma boa bibliófila, ela lia muito para mim, desde que me entendo por gente. Acho que minha mania de ler até pegar no sono – às vezes pouco prática, porque se o livro for interessante, viro a madrugada e esqueço que existem outras coisas na vida tipo trabalho, estudo, amigos, família... – vem de todas as vezes em que ela lia para mim antes de dormir. A hora da história era a melhor hora do dia, sem comparação. E ela acabou criando um monstrinho que se alimenta de livros, esta senhorita que vos dirige a palavra.


Quando estava pensando em um nome para um espaço onde eu pudesse depositar o que eu escrevo, não queria coisas infantis e desinteressantes como “Livros da Vic”, ou “Bibliofilia”. Afinal, meu blog não falaria só de livros, deveria ser um lugar para eu jogar todas as maluquices sem gênero que eu boto no papel – na tela, na verdade, mas vocês entenderam. Pensei em um nome aleatório, como o site de cinema que se chama Omelete. Também não encontrei nada original. Aí o gatinho ali na prateleira me sorriu desse seu jeito safado. Pronto, seu maldito, conseguiu! Vai ser o protagonista do blog.

Ok, Vic, entendi. Mas o que o gato tem a ver com o rol~e todo, além da sua ligação pessoal com Alice e o fato dde ele ser personagem de um clássico literário?

Calma, jovem! Eu explico com uma citação do próprio Mestre Gato:




“O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para saiir daqui?”
“Isso depende muito de para onde você quer ir,” respondeu o Gato.
“Não me importo muito para onde,” retrucou Alice.
“Então não importa o caminho que você escolha,” disse o Gato.
“Contanto que dê em algum lugar,” Alice completou.
“Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante,” disse o Gato.


Maconha total, né? Já ouvi dizer que os criadores do desenho animado eram um bando de maconheiros doidões. Talvez por isso o resultado tenha ficado assim.

Mas convenhamos, quem nunca se sentiu como Alice? Preciso continuar, preciso tomar escolhas, mas onde elas me levarão? Temos grandes objetivos abstratos na vida, mas às vezes ficamos tão distraídos com tudo o que nos rodeia, que parece que enquanto damos um passo, o objetivo também dá mais um passo e maior que o nosso. É como perseguir a lua em uma noite clara.

Esse vazio perpassa todo a história de Alice.. Se vocês repararem, tanto no desenho como nas ilustrações do livro, as personagens estão em destaque com um contraste bem forte com o fundo, que é escuro, meio nebuloso e sem detalhes. É nesse limbo que a gente flutua, cercado de palavras e frases feitas e pessoas que agem em uma lógica que não compreendemos muito bem.
Meu jeito de lidar com esse enrosco é, descobri recentemente, a literatura, tanto a minha, como a dos livros sem fim que existem nesse mundo e podem me explicar alguma coisa sobre as doideiras como essa musiquinha fumada que meu gato listrado de rosa e roxo canta pra mim todos os dias de manhã.
Este é o primeiro post dessa seção que só é nova aqui no blog, porque ela existe em mim desde o dia em que minha mãe leu a primeira historinha do livro do Ursinho Pooh pra mim. O Diário do Gato falará sobre o meu dia-a-dia, mas não esperem dicas da minha make para o aquela festa ou a refeição vegana que preparei tão lindamente. Vocês vão adentrar nas caraminholas da minha cabeça, nas voltas e bifurcações e caminhos sem saída da minha busca pelo oelho Branco, tentando entender as dicas do meu único guia, o Gato que ri.

domingo, 22 de abril de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #2





Assunto: Café em NYC

            Estou num Starbucks de frente para o Central Park. Acabei de me olhar no reflexo do vidro do café. O espelhinho do banheiro das asiáticas do Washington Heights realmente não presta pra nada. Quase tomei um susto com a minha aparência. Meu rosto está muito fino, as maçãs parecem proeminentes e o nariz mais afilado. “de aristocrata”, como você costumava dizer. Uma palavra tirada de romances antigos, da prateleira com os seis de jane Austen ao lado da foto de mim e barbra com roupas de ballet. Barbra estava com uma cara de brava naquela foto, olhando para mim com o rabo do olho, como se eu tivesse lhe dito alguma coisa cruel. Devo mesmo ter feito isso, apesar de não me lembrar o que foi. Não é á toa que ela virou uma jornalista nerd, acho que eu mesma arranquei as possibilidades artísticas dela pela raiz. Naquela foto dava para ver os meus olhos verdes muito grandes para o rosto triangular, já praticamente sem bochechas aos 9 anos. Algum dia eu tive bochechas fofas, como as de um bebê de propaganda? Não consigo me lembrar de nenhuma fotografia em que eu tivesse bochechas... Agora, é estranho, meus olhos também parecem grandes demais, brilhantes, aquosos, a face meio encovada, de alguém meio morta de fome. Talvez seja só o reflexo distorcido do vidro... Bem, fato é que estou mesmo meio flagelada, morta de fome. Parece a cara de alguma criança de rua de Les Miserables.
            Só agora, depois de quase 40 minutos,  meus pés estão começando a descongelar. Esse casaco que peguei emprestado da Luciana não é nem de longe o suficiente. Tudo bem que andei na neve funda desde o Heights até o Central Park (quantos quilômetros será que isso dá? bem, levou várias horas), mas já devia ter conseguido comprar um para mim à essa altura. O aluguel com os asiáticos assustadores está pago para o próximo mês, mas só tenho 10 dólares restantes e têm que durar o máximo possível. Hoje ainda não comi nada a não ser esse café com gosto de água suja que eles têm aqui – ah, e oleite de manhã – e o cheiro dos paninis já está começando a virar tortura. Não, preciso voltar e comer as refeições prontas que tenho no freezer, calculadas perfeitamente para durarem até a próxima segunda-feira. Depois disso... Espero que minhas duas notinhas de 5 comecem a se gostar logo e me deem filhotes até lá.
            Já perdi a conta do número de currículos que enviei. Produções pequenas e grandes, corais, escolas de música... Pequenos, grandes, médios, imensos, decadentes, iniciantes...Encontrei até um restaurante com temática de musicais. Mas a garota do caixa largou meu currículo em um canto do balcão com um resmungo, como se fosse um panfleto que a gente pega no sinal só para fazer o pobre coitado que está lá no sol o dia inteiro parar de encher a paciência.
            Há uns 10 dias comecei a dar tiros de metralhadora de currículos, fotos, vídeos, gravações de todo tipo para teatro comum, mesmo que esse não seja meu forte, e TV. Até que ter estudado isso pode vir a calhar. Estou a um passo de passar para os empregos de imigrantes. “Oi, meu nome é Audrey! Sou atriz/garçonete.” Que clichê...
Mas nem sei se isso eu consigo. Meu sotaque estudado, meio britânico não cola. Parece não combinar com a minha aparência exótica: a morena de olhos verdes e cabelo preto até o meio das costas deve falar como uma americana ou latina, não ter esses T’s afrancesados e comer os R’s, como uma imitação barata de Julie Andrews. Se eu falasse um inglês macarrônico, quem sabe tivesse mais chance. Mas não me atrevo fazer isso de propósito. Não. Não posso simplesmente atirar para o lixo tudo o que você me ensinou, todas as horas assistindo filmes sem legendas com a Barbra reclamando do lado que não tinha entendido, todas as vezes em que conversamos em inglês na mesa de jantar, todas as vezes que você cantava músicas de Grease limpava a casa, me chamando de passarinho quando eu cantava uma frase de volta, lá do meu quarto, corrigindo uma nota desafinada.
            Você deveria ter ficado aqui, devia ter obrigado meu pai a casar com você e te dado uma possibilidade de viver no país cuja cultura você tanto adorava. Em vez de enfiar num táxi para o aeroporto com um bebê de dois meses debaixo do braço. Pelo menos agora não tenho problemas com a imigração. Entro na fila de cidadãos americanos no JFK, mesmo sob todos os olhares tortos. O livrinho azul marinho ainda é meu, com minha foto autêntica e esse carimbo da imigração.
            Para falar a verdade, mesmo com o passaporte mais desejado do mundo na minha bolsa, não me sinto merecedora dele. Aqui não sou diferente de qualquer mocinha latina trabalhando em um comércio, com a pele bronzeada, os cabelos alisados a ferro quente e um pouco mais de curvas que as fadinhas loiras do meio oeste. A única coisa que parece que herdei do meu pai é o meu nariz “aristocrático”, em que você adorava correr a pontinha do dedo e sorrir. Olhando no espelho, sou uma mistura de você e vovó, a não ser pelo bendito cabelo crespo da tia Celeste. E os olhos verdes também. Você me disse uma vez, quando eu estudava genética na escola, que meu pai tinha olhos castanhos, mas que alguém na família dele devia ter olhos claros para eu ter nascido assim, com esse meu verde que às vezes parecia azul. Quando estava sol, geralmente, parecia azul, mas se esverdeava nos dias de chuva, como se fosse musgo que a humidade trouxesse para os circulozinhos de cor no meu rosto de tons beges. Você deve ter se apaixonado mesmo pelo  meu pai... Agora , lembrando de como você sorria e tocava meu nariz. Devia sentir falta dele toda vez que olhava para o meu rosto. É difícil pensar na mãe da gente como uma mulher apaixonada, amante de alguém, sofrendo por amor... Não aquela mulher forte, que fazia nosso lanche e nos acompanhava até a escola, que curava feridas e estancava nossas lágrimas. Nunca paramos para pensar nas lágrimas dela – suas – que deve ter chorado no quarto fechado, na calada da, noite em que podia despir a fantasia de mãe e ser só você. Nunca vi você chorar... Acho que nunca mesmo. A não ser que o final da primeira fita de vídeo de ...E O Vento Levou conte, nem a música final de miss Saigon enquanto ouvíamos o CD inteiro a caminho de alguma viagem para a praia, encalhadas no congestionamento de paulistas exaustos tentando aproveitar um pouco o salário que ganham nos outros dias do ano.

            Uau! Meu coração deu um pulo e está batendo tão forte que acho que deve dar para ouvir na mesa ao lado. Acabei de receber um e-mail de um agente de casting! É para um filme pequeno, mas é meu primeiro call back para um teste! Respondi na mesma hora e ele quer me ver às três ainda hoje, se eu conseguir driblar a neve. Claro que consigo driblar a neve, já driblei coisa muito pior para chegar a um ensaio em que só eu apareci! Cresci na Zona Leste, meu caro, eu chego aos lugares, não importa o quê. Ok, tenho que me preparar... Prometo que escrevo mais depois contando, tá bom? Torça por mim, você sempre foi meu amuleto da sorte!

Mil Beijos
Audrey


sexta-feira, 20 de abril de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #1

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De: Audrey Priestly <audreypriestly@yahoo.com.br>
Para:
mhfs2000@uol.com.br
31 de janeiro de 2013, 12:23

Assunto: Manhattan

            Não consegui resistir. Tenho que escrever para você hoje. Está nevando! Nevando de verdade, como num cartão de Natal, como o final feliz de um filme romântico... Claro que esteve nevando o mês inteiro, floquinhos tão pequenos, que quase parecem chuva, daqueles que se desmancham em água assim que tocam o chão, deixando as  ruas todas enlameadas, cheias de poças e escorregadias. Janeiro em Nova York, como poderia ser diferente?
Mas essa noite nevou de verdade. Fui até a cozinha do apartamento tomar um copo de leite às 4:30 da manhã (acordei e não consegui dormir mais) e já estava claro. Vi a janelinha de vitrô branquíssima de neve! Enfiei um casaco e fui  até a porta do prédio, de pijama e tudo. A escada estava invisível debaixo da neve!
            Como uma cidade pode se transformar dessa forma do dia para a noite? Quase não tem carros na rua, acho que não devem conseguir dirigir. Na verdade, o único jeito de se locomover é o metrô, mas vi no site da CNN que algumas linhas não estão funcionando. E as escolas também estão sem aula! É como  um dia de enchente em São Paulo, ou de greve de ônibus, em que a gente ficava feliz pela cidade estar um caos.
            Não aguentei mais ficar no meu quarto minúsculo. Sabe, eu fiz as contas, e eu pago  proporcionalmente mais aqui do que por um apartamento de três quartos no Jardim Paulista. Em Washington Heights! Bem, é o que tenho. As asiáticas de quem alugo esse quartinho parecem ter aprendido um pouquinho mais de inglês desde que eu cheguei– era de se esperar, já que assistem reality shows o dia inteiro (sério, não consigo mais olhar para a cara da Kim Kardashian sem ter vontade de socar alguma coisa). Mas ainda só falam comigo quando eu inicio o diálogo, geralmente para perguntar se querem algo do mercado ou se também estão sem sinal de celular. A operadora delas é a mesma que a minha, então resposta para essa última é sempre interessada, mas para a segunda é sempre não. Assim mesmo: “Não.” E só. E um olharzinho instantâneo e chinês. Sem um obrigado. Acho que uma palavra universalmente conhecida é “thank you,” se é que existe uma, não? Elas também fumam alguma coisa que não  sei identificar. Os tipos de drogas que podem ser fumadas não foi uma coisa que eu posso dizer que aprendi na adolescência, acho que você fica feliz com isso não é? Mas todas as minhas coisas agora têm esse cheiro enjoativo também.
            É bom escrever em português um pouco. Desde que eu cheguei aqui acho que não falei uma palavra de português – o que já faz quase 6 semanas. Olha só! Estou até medindo o tempo em semanas, igual eles fazem aqui! Estou até sonhando em inglês!
É estranho, mas não sinto nenhuma falta do Brasil. Bom, não é muito estranho, na verdade. Acho que isso é bom, já que eu escolhi me mudar para cá, não é? Nos primeiros dias, a Luciana me mandava mensagens o tempo todo, mas depois parou. Ela está trabalhando muito e preparando o casamento, acho que não tem tempo. Mais ninguém tem se manifestado... Bom, o carnaval está chegando, todo mundo deve estar se preparando para viajar, ou planejando a agenda de blocos de rua, ou indo no ensaio da escola de samba. Argh... Carnaval... Mas eu também não estou fazendo nenhum esforço para falar com ninguém de casa e estou me sentindo um pouco culpada.
Acho que você não vai ficar muito satisfeita em saber, mas a Barbra também não tem falado comigo. Não desde... você sabe... Ela não foi muito a favor de eu me mudar, disse que era besteira minha, que eu devia arranjar um trabalho como professora de inglês e parar com essa história de atriz, que eu estava louca se achava que se eu não conseguia nada em São Paulo ia conseguir alguma coisa aqui. Mas ela mesma se mudou pra Brasília, não foi? Podia muito bem ser jornalista de política de outro lugar. Ela nunca entendeu a ligação que eu e você temos com o teatro e a música. Desde pequena, lembra?
            Bom, ela pode ter razão até certo ponto. Eu sei que é muito difícil... Mesmo assim... Simplesmente não pude continuar morando naquele apartamento. Não era possível.