domingo, 22 de abril de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #2





Assunto: Café em NYC

            Estou num Starbucks de frente para o Central Park. Acabei de me olhar no reflexo do vidro do café. O espelhinho do banheiro das asiáticas do Washington Heights realmente não presta pra nada. Quase tomei um susto com a minha aparência. Meu rosto está muito fino, as maçãs parecem proeminentes e o nariz mais afilado. “de aristocrata”, como você costumava dizer. Uma palavra tirada de romances antigos, da prateleira com os seis de jane Austen ao lado da foto de mim e barbra com roupas de ballet. Barbra estava com uma cara de brava naquela foto, olhando para mim com o rabo do olho, como se eu tivesse lhe dito alguma coisa cruel. Devo mesmo ter feito isso, apesar de não me lembrar o que foi. Não é á toa que ela virou uma jornalista nerd, acho que eu mesma arranquei as possibilidades artísticas dela pela raiz. Naquela foto dava para ver os meus olhos verdes muito grandes para o rosto triangular, já praticamente sem bochechas aos 9 anos. Algum dia eu tive bochechas fofas, como as de um bebê de propaganda? Não consigo me lembrar de nenhuma fotografia em que eu tivesse bochechas... Agora, é estranho, meus olhos também parecem grandes demais, brilhantes, aquosos, a face meio encovada, de alguém meio morta de fome. Talvez seja só o reflexo distorcido do vidro... Bem, fato é que estou mesmo meio flagelada, morta de fome. Parece a cara de alguma criança de rua de Les Miserables.
            Só agora, depois de quase 40 minutos,  meus pés estão começando a descongelar. Esse casaco que peguei emprestado da Luciana não é nem de longe o suficiente. Tudo bem que andei na neve funda desde o Heights até o Central Park (quantos quilômetros será que isso dá? bem, levou várias horas), mas já devia ter conseguido comprar um para mim à essa altura. O aluguel com os asiáticos assustadores está pago para o próximo mês, mas só tenho 10 dólares restantes e têm que durar o máximo possível. Hoje ainda não comi nada a não ser esse café com gosto de água suja que eles têm aqui – ah, e oleite de manhã – e o cheiro dos paninis já está começando a virar tortura. Não, preciso voltar e comer as refeições prontas que tenho no freezer, calculadas perfeitamente para durarem até a próxima segunda-feira. Depois disso... Espero que minhas duas notinhas de 5 comecem a se gostar logo e me deem filhotes até lá.
            Já perdi a conta do número de currículos que enviei. Produções pequenas e grandes, corais, escolas de música... Pequenos, grandes, médios, imensos, decadentes, iniciantes...Encontrei até um restaurante com temática de musicais. Mas a garota do caixa largou meu currículo em um canto do balcão com um resmungo, como se fosse um panfleto que a gente pega no sinal só para fazer o pobre coitado que está lá no sol o dia inteiro parar de encher a paciência.
            Há uns 10 dias comecei a dar tiros de metralhadora de currículos, fotos, vídeos, gravações de todo tipo para teatro comum, mesmo que esse não seja meu forte, e TV. Até que ter estudado isso pode vir a calhar. Estou a um passo de passar para os empregos de imigrantes. “Oi, meu nome é Audrey! Sou atriz/garçonete.” Que clichê...
Mas nem sei se isso eu consigo. Meu sotaque estudado, meio britânico não cola. Parece não combinar com a minha aparência exótica: a morena de olhos verdes e cabelo preto até o meio das costas deve falar como uma americana ou latina, não ter esses T’s afrancesados e comer os R’s, como uma imitação barata de Julie Andrews. Se eu falasse um inglês macarrônico, quem sabe tivesse mais chance. Mas não me atrevo fazer isso de propósito. Não. Não posso simplesmente atirar para o lixo tudo o que você me ensinou, todas as horas assistindo filmes sem legendas com a Barbra reclamando do lado que não tinha entendido, todas as vezes em que conversamos em inglês na mesa de jantar, todas as vezes que você cantava músicas de Grease limpava a casa, me chamando de passarinho quando eu cantava uma frase de volta, lá do meu quarto, corrigindo uma nota desafinada.
            Você deveria ter ficado aqui, devia ter obrigado meu pai a casar com você e te dado uma possibilidade de viver no país cuja cultura você tanto adorava. Em vez de enfiar num táxi para o aeroporto com um bebê de dois meses debaixo do braço. Pelo menos agora não tenho problemas com a imigração. Entro na fila de cidadãos americanos no JFK, mesmo sob todos os olhares tortos. O livrinho azul marinho ainda é meu, com minha foto autêntica e esse carimbo da imigração.
            Para falar a verdade, mesmo com o passaporte mais desejado do mundo na minha bolsa, não me sinto merecedora dele. Aqui não sou diferente de qualquer mocinha latina trabalhando em um comércio, com a pele bronzeada, os cabelos alisados a ferro quente e um pouco mais de curvas que as fadinhas loiras do meio oeste. A única coisa que parece que herdei do meu pai é o meu nariz “aristocrático”, em que você adorava correr a pontinha do dedo e sorrir. Olhando no espelho, sou uma mistura de você e vovó, a não ser pelo bendito cabelo crespo da tia Celeste. E os olhos verdes também. Você me disse uma vez, quando eu estudava genética na escola, que meu pai tinha olhos castanhos, mas que alguém na família dele devia ter olhos claros para eu ter nascido assim, com esse meu verde que às vezes parecia azul. Quando estava sol, geralmente, parecia azul, mas se esverdeava nos dias de chuva, como se fosse musgo que a humidade trouxesse para os circulozinhos de cor no meu rosto de tons beges. Você deve ter se apaixonado mesmo pelo  meu pai... Agora , lembrando de como você sorria e tocava meu nariz. Devia sentir falta dele toda vez que olhava para o meu rosto. É difícil pensar na mãe da gente como uma mulher apaixonada, amante de alguém, sofrendo por amor... Não aquela mulher forte, que fazia nosso lanche e nos acompanhava até a escola, que curava feridas e estancava nossas lágrimas. Nunca paramos para pensar nas lágrimas dela – suas – que deve ter chorado no quarto fechado, na calada da, noite em que podia despir a fantasia de mãe e ser só você. Nunca vi você chorar... Acho que nunca mesmo. A não ser que o final da primeira fita de vídeo de ...E O Vento Levou conte, nem a música final de miss Saigon enquanto ouvíamos o CD inteiro a caminho de alguma viagem para a praia, encalhadas no congestionamento de paulistas exaustos tentando aproveitar um pouco o salário que ganham nos outros dias do ano.

            Uau! Meu coração deu um pulo e está batendo tão forte que acho que deve dar para ouvir na mesa ao lado. Acabei de receber um e-mail de um agente de casting! É para um filme pequeno, mas é meu primeiro call back para um teste! Respondi na mesma hora e ele quer me ver às três ainda hoje, se eu conseguir driblar a neve. Claro que consigo driblar a neve, já driblei coisa muito pior para chegar a um ensaio em que só eu apareci! Cresci na Zona Leste, meu caro, eu chego aos lugares, não importa o quê. Ok, tenho que me preparar... Prometo que escrevo mais depois contando, tá bom? Torça por mim, você sempre foi meu amuleto da sorte!

Mil Beijos
Audrey


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