domingo, 30 de dezembro de 2018

Conto: B.



Sozinha na sala de ensaio, Amanda desdobrou a camisa de dentro da sacola de papel do brechó e a ajeitou num cabide para ver o efeito com o resto do figurino de Edmond. Sim, perfeito. Maldita hora a da decisão de montar uma versão teatral feminista de Mansfield Park, de Jane Austen, com figurinos de época e adereços expressionistas seria uma boa ideia. Amanda e seu elenco tinham passado todo o mês anterior cavando em todos os locais imagináveis, à procura de todos os elementos que tornariam a obra completa. Uma semana para estrearem e faltava a desgraçada da camisa do mocinho. Agora podia respirar.
Ela ajeitou as mangas bufantes e tentou visualizá-las nas suas cenas construídas com tanto método. Estava orgulhosa de seu achado. Esperava que o tamanho fosse correto para a atriz; sua companhia era rígida em compor-se só de mulheres.
Mas observando bem, a coisa não parecia autêntica de verdade. Velha e amassada, sim, meio amarelada, mas não produzida nos idos de 1800. E aquele bolsinho era mesmo esquisito. Quando foi que começaram a usar bolsinhos no lado esquerdo do peito nas camisas masculinas? Suzana saberia esse tipo de coisa. Suzana era a encarregada oficial dos figurinos do grupo. Bem, não apareceria nada debaixo do colete de qualquer forma.
Ela alisou o tecido enrugado e sentiu alguma coisa dentro do bolso. Era um pedaço de papel, dobrado tantas vezes que formava quase uma bolinha compacta. Amanda o abriu, e as palavras quebraram sobre ela:

Resultado de imagem para jane austen likenessNão posso precisar a hora, ou o local, ou o olhar, ou as palavras que lançaram as fundações. Foi muito tempo atrás. Eu estava no meio antes que soubesse ter começado.

B.

Amanda percebeu que estivera segurando a respiração e soltou o ar. Reconhecia a frase de Orgulho e Preconceito, claro, o grande cliché de Jane Austen. A frase não estava entre aspas. Quem quer que tivesse escrito sabia que o destinatário a reconheceria, sem necessidade de marcas, ou DE colocar a referência entre parênteses; uma burocracia de trabalho escolar. Ou mesmo não quisesse que a frase fosse reconhecida, poderia ter pretendido que se pensasse ser da sua autoria.
Estava assinado B. Quem era B? Beto, Bruno, Bento, Bruna, Beatriz,
Benedito, Brenda, Benício... Ou poderia ser um sobrenome, ou mesmo um apelido. E o que estava fazendo dentro do bolso daquela camisa ridícula? O dono a tinha recebido ou TINHA escrito, sem nunca reunir a coragem para entregar para a outra pessoa?
Com o instinto afiado para construir personalidades a partir de pistas vagas do treinamento de atriz, tentou analisar a letra. Era bonita e inclinada, talvez feminina, pelo jeito antigo e caprichado de traçar as maiúsculas. Mas estava escrito em tinta de caneta azul, então não deveria ser assim tão velha. Quando foi que inventaram as esferográficas? Cada palavra era esmerada, desenhada com perfeição, como se pintada no papel com uma deliberação há muito calculada. O B, no entanto, parecia diferente, um pouco mais gordo e tosco. Dava para dizer que era uma letra masculina, só esse B da assinatura. Mas de algum jeito não parecia ter sido escrito por uma pessoa diferente.
Bem, a pessoa usando a camisa poderia não ser um homem, no fim das contas. Poderia ser um disfarce, ou, o que era mais provável, alguém atuando em uma peça, exatamente como as suas atrizes. Mas estava sendo idiota! Não era ela uma feminista? Uma mulher não poderia ter uma letra com aparência masculina? Oras, sua própria letra era quase ilegível.
B de Bennett, como Jane, Lizzie, Mary, kitty e Lydia, as irmãs casadouras do Derbyshire, todas mulheres, todas diferentes, todas à procura de algo. Tanto vinha pensando sobre Austen e as mulheres de Austen e, bem ali, caíam em suas mãos as palavras de Austen. O chão emitia vibrações erráticas contra os calcanhares descalços, todo o mundo de repente grande demais para ela, insignificante como uma irmã Bennett bastarda.
Sem aviso, Suzana apareceu pela porta, carregada com sacolas e malas contendo o restante dos adereços que faltavam.
– Ai meu Deus, essa camisa é perfeita demais! – Suzana exclamou sem se dar ao trabalho de cumprimentar. Amanda foi rápida e enfiou o bilhete no bolso da calça. E voltou a atenção para o tagarelar da companheira.
Foi para casa bem depois da meia-noite, fisicamente exausta, mas com a mente a dar saltos. Encontrar aquele bilhete de amor assim, de repente, a tinha movido, embora não soubesse bem explicar o porquê. Já fazia tanto tempo que vira qualquer coisa assim na vida real, que tinha esquecido que não existiam só em entretenimento romântico barato de TV aberta. De qualquer jeito era um bilhete antigo. Era óbvio que hoje em dia aquele tipo de melosidade era tão real quanto posts de mídias sociais com declarações de amor. Um clique e puff! Sumiu da face da Terra.
Diferente dos admiradores de Austen mais incautos, Amanda não acreditava em amor. Pensava ser o amor uma mera maneira de passar o tempo enquanto viva. Se existiam coisas como almas gêmeas, pessoas destinadas a ficarem juntas, qual era a chance de encontrá-la nas multidões do mundo? Se tanta gente clamava ter se unido com o parceiro por amor, se tantos dos seus amigos, familiares e colegas faziam declarações para a pessoa amada a cada data pré-marcada no calendário, como é que poderia haver tantos malditos sortudos no mundo?
Sua teoria era assim: essa coisa que as pessoas chamavam de amor não era o que elas imaginavam ser. Esse arrepio de magia Disney era só uma transferência de energia. Se um cidadão minimamente adequado cruzava o caminho de outro cidadão minimamente adequado em uma hora propícia – hormônios, humores, carências, complexos de édipo... – e interagisse da maneira correta, haveria atração. Claro, atração imediata, do tipo tiro e queda. Tudo predisposição psicológica e desejo animal de procriar, tudo uma questão de probabilidade, como tirar a bola certa na esfera do jogo de bingo.  
Havia chegado a essa convicção após se apaixonar pelo professor de História aos 17 anos. Sua mãe tinha descoberto e a levado para uma terapeuta. Depois de várias tentativas de se conectar com ela, exausta, a terapeuta tinha concluído que Amanda funcionava de maneira diferente das outras adolescentes: uma casca de racionalidade, com um recheio de algodão doce. Ela havia lhe dado um texto sobre projeções e transferências, um sobre relações de poder e um terceiro sobre o fascínio erótico que o professor pode inspirar. Amanda não apareceu na sessão seguinte, envergonhada de si mesma.
Mas ainda não foi então que a sua crença se estabeleceu. Havia chamado “apaixonar-se” o que se passou no primeiro ano da faculdade. Ele estudava Filosofia, ela, Teatro, conversavam até o sol sair, bebiam e iam a festas. Ele cuidou dela quando ficou doente, ela cuidou dele quando seu avô morreu. EO sexo era intenso; eles iam a peças experimentais, a protestos políticos, a leituras de poesia feminista. Ele se formou e Amanda tinha certeza que era a hora de pôr em prática tudo o que vinham fantasiando há tanto tempo: ele seria professor universitário, ela faria teatro, um apartamento aconchegante em um bairro cheio de gente alternativa, um cachorrinho adotado, maconha na gaveta do banheiro e talvez uma criança, que eles educariam para ser inteligente, respeitosa, artística e com tendências políticas de esquerda. A vida perfeita, desenhada para eles em um oásis particular.
Mas a metade da sua laranja veio até ela e disse que havia decidido se mudar para o outro lado do país e estudar Direito. Era hora de crescer. E se ele quisesse algum dia ser alguém no mundo, precisaria de uma namorada que não passava os dias fazendo macaquices para uma plateia em troca de alguns trocados. Precisava de alguém que soubesse se vestir e como se comportar na frente de gente importante, alguém que o apoiasse em tudo.
Mas Amanda não o apoiava em cada desejo seu? Ela entrou em depressão. Ela quase largou a faculdade de Teatro e foi estudar alguma coisa mais sensata. Ela quase se tornou uma professora de francês triste e abandonada, como sua mãe, que a criara sem um pai. Foi então que leu todos os romances de Jane Austen e descobriu o quanto aquela história de feminismo era mais profunda.
Amanda jurou para si mesma que nunca mais teria um relacionamento fofura na vida. Ela descobriu também que podia se sentir atraída por garotas – e elas eram tão mais fáceis! Que alívio! Ela não podia negar, porém, que se tivesse que escolher entre um homem com a aparência de Marlon Brando em Um Bonde Chamado Desejo e uma mulher com a aparência de Ava Gardner em Vênus, Deusa do Amor,  sem saber nada sobre eles, para uma única noite de prazer, escolheria ele e não ela. Esse era mais um dos seus segredos, um que guardava junto com os livros de Jane Austen na última gaveta do criado mudo.
– Isso é sério, Amanda? Jane Austen?
– Sim, por que não?
Sentadas no chão da sala de ensaio que lutaram tanto para adquirir, as garotas de Amanda tinham se entreolhado, algumas tinham rido de nervoso. Estavam acostumadas ao desprezo que ela sempre demonstrava pelo realismo estético e por qualquer coisa convencional. Costumava propor sátiras de Bernard Shaw ou montagens brechtianas provocativas, ou vinha com ideias um pouco desatinadas para performances subversivas. Com uma energia raivosa toda sua, Amanda gostava de desafiar tudo o que era convencional.
– Você não odeia esses melodramas bregas e empoeirados? Que porcaria a gente vai discutir em uma história de um cara que é preconceituoso e uma garota que é orgulhosa... Ou é ao contrário?
– Isso não é Orgulho e Preconceito, Michelle. Austen escreveu seis romances inteiros. Esse é Mansfield Park. Bem diferente.
– Nunca li. Achei que você não estava interessada nesse tipo de coisa também.
Amanda inspirara com profundidade, buscando a explicação racional que havia elaborado mentalmente para aquele momento. – Bom, achei que poderíamos atrair o público com o nome da autora de que tanta gente gosta e transmitir uma mensagem contemporânea. A posição da mulher na sociedade, o capitalismo das relações românticas... O de sempre. Tem uma parte bem grande sobre escravidão também. Achei que a gente poderia expandir isso simbolicamente em cena.
Ninguém disse nada.
Amanda tinha mergulhado em uma dissertação sobre relações amorosas, citando Simone de Beauvoir, Judith Butler, Hegel. Encouraçava-se dos pensamentos de outros, defendendo-se do olhar hostil das outras.
– Século XIX ou não, – Michelle comentou quando a diretora fez uma pausa para respirar. – Acho que dar um jeito de casar com o macho rico deve ser o melhor tipo de casamento hétero que é possível.
Até Amanda havia sorrido. Muito debate foi preciso para que conseguisse fazer prevalecer seu desejo.
Na última semana antes da estreia, o dia seguinte a deparar-se com B em um bolso de uma camisa velha cafona, Amanda acordou cedo e correu outra vez para o metrô. Dessa vez, para dar aulas de teatro em uma escola de subúrbio. Ensinar crianças era a segunda coisa que gostava mais de fazer em sua vida profissional. Abrir as mentes desses sujeitinhos em projeto e vê-los florescer era tão gratificante que tinha o poder de curar qualquer angústia da sua vida pessoal. As meninas, em especial. mas naquele dia foi diferente.
Quando precisou pensar num tema para os alunos criarem uma cena improvisada, viu-se descrevendo uma situação em que encontravam um bilhete de amor dentro de uma camisa de brechó. O resto era com eles. Quinze minutos.
Amanda se sentou em uma cadeira com o encosto quebrado no corredor e ajustou o timer do celular. Estava tão aérea que precisava da retidão do relógio para não se deixar levar para dentro de si. O bilhete ainda estava no bolso da calça. Ela sentia uma urgência de reabri-lo e estudar outra vez as letras incriminadoras. Mas seria um caso se algum dos alunos viesse fazer uma pergunta e visse o bilhete. Aquelas palavras pareciam íntimas demais para serem vistas por qualquer pessoa que não ela.
Afinal, para quem B estava escrevendo? Um homem, uma mulher, um companheiro com quem tivera uma briga e o bilhete tinha a intenção de fazer as pazes? Ou era uma declaração de amor de verdade? Ou mesmo uma piada interna? Não, não podia ser uma piada. Toda a vastidão do sentimento condensado naquele pedacinho de papel, toda a força que deve ter acarretado para ser escrito, toda a coragem que deve ter custado para entregá-lo... e depois o quê? O que tinha acontecido? Qual era o próximo passo?
E Jane Austen. Mulher maldita! Não podia ficar quieta no seu túmulo de virgem? Não podia ficar imóvel no passado? Não podia se limitar a pintar retratos sociais do seu tempo para as gerações futuras verem como viviam, do que se alimentavam e como se reproduziam homo sapiens habitantes do campo inglês do século XIX? Por que tinha que ficar surgindo na vida de Amanda, sempre observando, sempre espreitando no limite entre luz e sombra, sempre vindo apertar o coração dela com unhas fortes demais, sempre a forçando-a a explicar-se por que aquela parte doce ainda existia nela – a parte que tanto queria renegar e jogar fora? Alguém tinha arrastado aquela parte para o proscênio, debaixo de holofotes agressivos, forçando-a a vê-la, não importava o quão vergonhoso pudesse ser: a forma de uma camisa velha horrorosa com um bilhete de amor ridículo esquecido dentro.
– Amanda, – falou uma vozinha da outra ponta do corredor. Ela tinha instruído seus alunos a chamá-la pelo primeiro nome. Sem relações de poder ou transferências, ou aura erótica do professor. Não em nenhuma sala de aula dela. – A gente terminou!
Amanda se levantou e caminhou de volta para o espaço vazio da sala de aula com as carteiras empurradas para o canto, esperando que as crianças soubessem lhe dar uma pista de como continuar; agora, com B em sua vida.


sexta-feira, 8 de junho de 2018

Poema: Caetano Atravessou


Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon Foto: Fausto Candelaria / AgNews
Vou correndo contra o vento
Sem tempo ou planejamento
Chuva e nunca me lembro
Caetano estaciona o carro.

Em caras de presidentes
Em grandes quedas de horror
Em dentes, armas, bandeiras
Bombas e
Protege as bancas de revista
Me enche de agonia e preguiça
Caetano atravessa a rua.

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de amores
O mundo cheio de atores vãos.
Caetano olha pro fotógrafo.

Ela brilha no casamento
Sem tempo de planejamento
Esqueceram da viola
Ela quer o cancelamento
Caetano espera no estacionamento.

Por entre fotos e nomes
Sem livro, com fuzil
Sem fome, sem rivotril
No coração do Brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
Emplacava bonito.
Não quero deixar de viver
No Leblon… no Leblon...

* Confira a notícia que deu origem a esse poema, que fez aniversário no dia 10 de março. Um grande marco do jornalismo! 




terça-feira, 1 de maio de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #3

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De: Audrey Priestly <audreypriestly@yahoo.com.br>
Para: mhfs2000@uol.com.br
3 de fevereiro de 2013, 21:27

Assunto: Domingo

Hoje fui até a Quinta Avenida. Pesquisei tudo antes de sair de casa, usando a internet das asiáticas. Quer dizer, minha internet! Pelo amor de Deus, por que eu continuo pensando assim? O apartamento é um terço meu! De qualquer forma, queria pelo menos olhar para as coisas bonitas que eu compraria quando tivesse algum dinheiro. Afinal, nenhum diretor de casting vai trabalhar domingo.
Sentei no vagão e vi as estações passarem correndo, os cartazes de filmes, peças, musicais, anúncios de pasta de dente, sapatos, viagens, remédio para insônia. As máquinas de refrigerante e porcarias, e conforme as estações foram se aproximando do centro, máquinas de livros. Os corredores pretos se alternavam com as estações brilhantes e coloridas, nos por seu caminho único, sem desvios.
Pessoas entravam e saíam. Pessoas de todas as cores. A minha estação chegou, as portas se abriram. A moça cega com o labrador desceu. As portas apitaram. mas não me levantei. O trem continuou. Dizem que a maioria dos trens não tem mais um maquinista, funcionam automaticamente, com pausas, avisos e aberturas de portas programados. Essa força maior me levou até o fim da linha.
Os passageiros foram avisados para descerem na última estação. Meu corpo não respondeu ao comando. As luzes se apagaram. Ninguém deu pela minha presença. O trem começou a voltar, fazendo o mesmo percurso, mas na ordem inversa – como uma bola de basquete atirada para o alto, que, em algum momento, fará o mesmo caminho na ordem inversa,  puxada pela força inexorável para baixo. Meu corpo pesava como se minha pele fosse feita do mesmo material que aqueles coletes pesados e muito maleáveis que se coloca para tirar radiografias dentárias, como quando você me levava tantas vezes para acertar a minha mordida cruzada e os dentes encavalados. Nem 12 anos eu tinha, mas era melhor corrigir logo mesmo, antes que eu começasse a fazer testes. Diretor nenhum me colocaria em nada com aqueles dentes.
Pensei em como eu nunca conseguia sentar no metrô em São Paulo. E aqui eu estava sentada! Precisava aproveitar. Tentei o dia todo me lembrar da última vez em que passei pela Estação da Sé sentada. Acho que isso nunca aconteceu.
Olhei de esguelha no caminho de volta, andando de costas, de volta para o bairro que agora tenho que chamar de meu. Reconheci a estação que eu estava, bem no meio do Times Square. Tenho a imagem exterior dessa estação grudada na minha mente, porque foi um dos primeiros lugares a que fui aqui, na época do intercâmbio. Eu estava bem embaixo daquele lugar. De repente aquele amontoado de prédios e pessoas e anúncios e mendigos e turistas e teatros e lojas e palcos e atores e efeitos especiais… tudo pesava sobre a minha cabeça. Quis descer, só andar por ali outra vez, apesar de já ter ido ontem e antes de ontem. mas quando relanceei para a porta, ela já estava se fechando. Mexi pouco mais que as mãos no gesto de pendurar melhor a bolsa no ombro e me levantar do assento precioso no vagão.
            Andei até o fim da linha e voltei. De novo. Já tinha feito isso uma vez em São Paulo, só de brincadeira, quando a mãe da Luciana deixou ela andar de metrô sozinha pela primeira vez. Não sei se você se lembraria, mas foi marcante pra mim, por algum motivo. Achei que aqui eles fossem mais rígidos, mas ninguém deu a mínima para mim, exatamente do mesmo jeito. Vi o trem se esvaziar e entrar manobrar, depois voltar no sentido oposto. Eu continuei sentada na poltrona de veludo velho. Era como se meu mundo tivesse pausado, minha cabeça funcionando em círculos, em túneis escuros em que se passa muito rápido, dentro de um vagão de metal, para não ver o que há no subsolo horrendo da cidade dos sonhos.
            Alguma coisa me despertou do meu transe. Talvez alguém esbarrando em mim, talvez uma criança qualquer gritando aguda por cima do barulho das máquinas... Não sei quantas voltas dei no metrô. Sei que já estava escuro quando voltei para casa. Isso não quer dizer muita coisa, porque escurece às 4 da tarde no inverno. Mas perdi o dia inteiro.
            Na minha caixinha de fósforos, deitei na cama sem nem tirar os sapatos e fiquei olhando para o teto, traçando as rachaduras em volta da lâmpada amarela solitária, observando o movimento de uma aranha. Eu tenho pavor de aranhas, mas não consegui encontrar em mim forças para matar aquela.
            Quando ouvi o interfone tocar, me sentei na cama. Domingo à noite o tal Jack sempre aparece para assistir um jogo na TV a cabo daqui. Ele é mestiço de asiático e negro, pelo que pude distinguir, e fala inglês. Gostaria que ele não falasse, porque toda vez que me vê faz alguma piadinha suja, ou passa a língua cor-de-rosa nos lábios, quase salivando. Eu mantenho minha cabeça reta, o olhar duro, como foi ensinada a fazer ao passar na frente de construções com roupas de balé em São Paulo. Uma hora vai perder a graça. Ou ele vai acabar vindo aqui quando estou sozinha e me estuprando. Mas, de qualquer jeito, quem se importaria?
            O toque do interfone significa que estava perto das 8 da noite. Talvez um sexto sentido que me mantém mais alerta na presença do “predador”, me fez sentar rápido na cama e bati a cabeça na prateleira acima dela. Está latejando até agora. Ótimo, não é? Agora além de tudo tenho um roxo enorme na testa. Os produtores de casting vão achar ainda mais exótico. A única coisa que pude pensar em fazer foi escrever aqui. Estou vazia feito um tubo de pasta de dente, espremida, retorcida, e só sai ar de dentro de mim. Daqui a pouco, vou estar tão espremida que nem ar vai sair. É como se eu fosse um robô que alguém não precisa mais, esquecido num canto, com as baterias prestes a acabar e que continua executando tarefas pré-programadas indefinidamente. Sem vontade, sem consciência, inesgotavelmente tentando agradar.
            E esse foi o meu dia.

domingo, 29 de abril de 2018

Por que diabos esse gato, Victoria?!




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Ok, hoje aconteceu. Uma pessoa me perguntou por que o blog se chama “Gato Sorridente”. Acho que a maioria das pessoas já viu o desenho da Disney de 1950, “Alice no País das Maravilhas”, certo? Algumas outras pessoas podem ter lido os livros de Alice do autor inglês (e com uma fixação ligeiramente bizarra por essa menininha loira e curiosa filha de seu colega professor de Oxford), Lewis Carroll. Gatos não riem, certo? Mas o gato do País das Maravilhas sorri. E ele também é roxo e rosa e muito metido a safado. Eu adoro o Gato da Alice! Inclusive, ele olha para a minha cara de uma prateleira alta no meu quarto todos os dias com esse sorriso maroto e essa expressão “aí, qual é a boa de hoje?”


Como uma boa leitora iniciada pelo gênero da fantasia juvenil, na minha transição para leitora madura, li os livrinhos de Carroll com menos de 15 anos e adorei, mesmo que só fosse entende-los em toda a sua profundidade depois, na faculdade de Letras. Mas é mesmo com o desenho que eu tenho uma conexão forte. Acho que Alice no País das Maravilhas é um dos filmes mais injustiçados da Disney. Ele tem tão poucos fãs e é uma criação tão, bom, maravilhosa. Eu e minha mãe sabemos esse filme quase inteiro de cor e temos uma citação de Alice para quase qualquer situação (que só nós entendemos, o que gera situações meio estranhas de nós duas falando frases aparentemente sem nexo na frente de outras pessoas).


Ah sim, e tem minha mãe. Como uma boa bibliófila, ela lia muito para mim, desde que me entendo por gente. Acho que minha mania de ler até pegar no sono – às vezes pouco prática, porque se o livro for interessante, viro a madrugada e esqueço que existem outras coisas na vida tipo trabalho, estudo, amigos, família... – vem de todas as vezes em que ela lia para mim antes de dormir. A hora da história era a melhor hora do dia, sem comparação. E ela acabou criando um monstrinho que se alimenta de livros, esta senhorita que vos dirige a palavra.


Quando estava pensando em um nome para um espaço onde eu pudesse depositar o que eu escrevo, não queria coisas infantis e desinteressantes como “Livros da Vic”, ou “Bibliofilia”. Afinal, meu blog não falaria só de livros, deveria ser um lugar para eu jogar todas as maluquices sem gênero que eu boto no papel – na tela, na verdade, mas vocês entenderam. Pensei em um nome aleatório, como o site de cinema que se chama Omelete. Também não encontrei nada original. Aí o gatinho ali na prateleira me sorriu desse seu jeito safado. Pronto, seu maldito, conseguiu! Vai ser o protagonista do blog.

Ok, Vic, entendi. Mas o que o gato tem a ver com o rol~e todo, além da sua ligação pessoal com Alice e o fato dde ele ser personagem de um clássico literário?

Calma, jovem! Eu explico com uma citação do próprio Mestre Gato:




“O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para saiir daqui?”
“Isso depende muito de para onde você quer ir,” respondeu o Gato.
“Não me importo muito para onde,” retrucou Alice.
“Então não importa o caminho que você escolha,” disse o Gato.
“Contanto que dê em algum lugar,” Alice completou.
“Oh, você pode ter certeza que vai chegar se você caminhar bastante,” disse o Gato.


Maconha total, né? Já ouvi dizer que os criadores do desenho animado eram um bando de maconheiros doidões. Talvez por isso o resultado tenha ficado assim.

Mas convenhamos, quem nunca se sentiu como Alice? Preciso continuar, preciso tomar escolhas, mas onde elas me levarão? Temos grandes objetivos abstratos na vida, mas às vezes ficamos tão distraídos com tudo o que nos rodeia, que parece que enquanto damos um passo, o objetivo também dá mais um passo e maior que o nosso. É como perseguir a lua em uma noite clara.

Esse vazio perpassa todo a história de Alice.. Se vocês repararem, tanto no desenho como nas ilustrações do livro, as personagens estão em destaque com um contraste bem forte com o fundo, que é escuro, meio nebuloso e sem detalhes. É nesse limbo que a gente flutua, cercado de palavras e frases feitas e pessoas que agem em uma lógica que não compreendemos muito bem.
Meu jeito de lidar com esse enrosco é, descobri recentemente, a literatura, tanto a minha, como a dos livros sem fim que existem nesse mundo e podem me explicar alguma coisa sobre as doideiras como essa musiquinha fumada que meu gato listrado de rosa e roxo canta pra mim todos os dias de manhã.
Este é o primeiro post dessa seção que só é nova aqui no blog, porque ela existe em mim desde o dia em que minha mãe leu a primeira historinha do livro do Ursinho Pooh pra mim. O Diário do Gato falará sobre o meu dia-a-dia, mas não esperem dicas da minha make para o aquela festa ou a refeição vegana que preparei tão lindamente. Vocês vão adentrar nas caraminholas da minha cabeça, nas voltas e bifurcações e caminhos sem saída da minha busca pelo oelho Branco, tentando entender as dicas do meu único guia, o Gato que ri.

domingo, 22 de abril de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #2





Assunto: Café em NYC

            Estou num Starbucks de frente para o Central Park. Acabei de me olhar no reflexo do vidro do café. O espelhinho do banheiro das asiáticas do Washington Heights realmente não presta pra nada. Quase tomei um susto com a minha aparência. Meu rosto está muito fino, as maçãs parecem proeminentes e o nariz mais afilado. “de aristocrata”, como você costumava dizer. Uma palavra tirada de romances antigos, da prateleira com os seis de jane Austen ao lado da foto de mim e barbra com roupas de ballet. Barbra estava com uma cara de brava naquela foto, olhando para mim com o rabo do olho, como se eu tivesse lhe dito alguma coisa cruel. Devo mesmo ter feito isso, apesar de não me lembrar o que foi. Não é á toa que ela virou uma jornalista nerd, acho que eu mesma arranquei as possibilidades artísticas dela pela raiz. Naquela foto dava para ver os meus olhos verdes muito grandes para o rosto triangular, já praticamente sem bochechas aos 9 anos. Algum dia eu tive bochechas fofas, como as de um bebê de propaganda? Não consigo me lembrar de nenhuma fotografia em que eu tivesse bochechas... Agora, é estranho, meus olhos também parecem grandes demais, brilhantes, aquosos, a face meio encovada, de alguém meio morta de fome. Talvez seja só o reflexo distorcido do vidro... Bem, fato é que estou mesmo meio flagelada, morta de fome. Parece a cara de alguma criança de rua de Les Miserables.
            Só agora, depois de quase 40 minutos,  meus pés estão começando a descongelar. Esse casaco que peguei emprestado da Luciana não é nem de longe o suficiente. Tudo bem que andei na neve funda desde o Heights até o Central Park (quantos quilômetros será que isso dá? bem, levou várias horas), mas já devia ter conseguido comprar um para mim à essa altura. O aluguel com os asiáticos assustadores está pago para o próximo mês, mas só tenho 10 dólares restantes e têm que durar o máximo possível. Hoje ainda não comi nada a não ser esse café com gosto de água suja que eles têm aqui – ah, e oleite de manhã – e o cheiro dos paninis já está começando a virar tortura. Não, preciso voltar e comer as refeições prontas que tenho no freezer, calculadas perfeitamente para durarem até a próxima segunda-feira. Depois disso... Espero que minhas duas notinhas de 5 comecem a se gostar logo e me deem filhotes até lá.
            Já perdi a conta do número de currículos que enviei. Produções pequenas e grandes, corais, escolas de música... Pequenos, grandes, médios, imensos, decadentes, iniciantes...Encontrei até um restaurante com temática de musicais. Mas a garota do caixa largou meu currículo em um canto do balcão com um resmungo, como se fosse um panfleto que a gente pega no sinal só para fazer o pobre coitado que está lá no sol o dia inteiro parar de encher a paciência.
            Há uns 10 dias comecei a dar tiros de metralhadora de currículos, fotos, vídeos, gravações de todo tipo para teatro comum, mesmo que esse não seja meu forte, e TV. Até que ter estudado isso pode vir a calhar. Estou a um passo de passar para os empregos de imigrantes. “Oi, meu nome é Audrey! Sou atriz/garçonete.” Que clichê...
Mas nem sei se isso eu consigo. Meu sotaque estudado, meio britânico não cola. Parece não combinar com a minha aparência exótica: a morena de olhos verdes e cabelo preto até o meio das costas deve falar como uma americana ou latina, não ter esses T’s afrancesados e comer os R’s, como uma imitação barata de Julie Andrews. Se eu falasse um inglês macarrônico, quem sabe tivesse mais chance. Mas não me atrevo fazer isso de propósito. Não. Não posso simplesmente atirar para o lixo tudo o que você me ensinou, todas as horas assistindo filmes sem legendas com a Barbra reclamando do lado que não tinha entendido, todas as vezes em que conversamos em inglês na mesa de jantar, todas as vezes que você cantava músicas de Grease limpava a casa, me chamando de passarinho quando eu cantava uma frase de volta, lá do meu quarto, corrigindo uma nota desafinada.
            Você deveria ter ficado aqui, devia ter obrigado meu pai a casar com você e te dado uma possibilidade de viver no país cuja cultura você tanto adorava. Em vez de enfiar num táxi para o aeroporto com um bebê de dois meses debaixo do braço. Pelo menos agora não tenho problemas com a imigração. Entro na fila de cidadãos americanos no JFK, mesmo sob todos os olhares tortos. O livrinho azul marinho ainda é meu, com minha foto autêntica e esse carimbo da imigração.
            Para falar a verdade, mesmo com o passaporte mais desejado do mundo na minha bolsa, não me sinto merecedora dele. Aqui não sou diferente de qualquer mocinha latina trabalhando em um comércio, com a pele bronzeada, os cabelos alisados a ferro quente e um pouco mais de curvas que as fadinhas loiras do meio oeste. A única coisa que parece que herdei do meu pai é o meu nariz “aristocrático”, em que você adorava correr a pontinha do dedo e sorrir. Olhando no espelho, sou uma mistura de você e vovó, a não ser pelo bendito cabelo crespo da tia Celeste. E os olhos verdes também. Você me disse uma vez, quando eu estudava genética na escola, que meu pai tinha olhos castanhos, mas que alguém na família dele devia ter olhos claros para eu ter nascido assim, com esse meu verde que às vezes parecia azul. Quando estava sol, geralmente, parecia azul, mas se esverdeava nos dias de chuva, como se fosse musgo que a humidade trouxesse para os circulozinhos de cor no meu rosto de tons beges. Você deve ter se apaixonado mesmo pelo  meu pai... Agora , lembrando de como você sorria e tocava meu nariz. Devia sentir falta dele toda vez que olhava para o meu rosto. É difícil pensar na mãe da gente como uma mulher apaixonada, amante de alguém, sofrendo por amor... Não aquela mulher forte, que fazia nosso lanche e nos acompanhava até a escola, que curava feridas e estancava nossas lágrimas. Nunca paramos para pensar nas lágrimas dela – suas – que deve ter chorado no quarto fechado, na calada da, noite em que podia despir a fantasia de mãe e ser só você. Nunca vi você chorar... Acho que nunca mesmo. A não ser que o final da primeira fita de vídeo de ...E O Vento Levou conte, nem a música final de miss Saigon enquanto ouvíamos o CD inteiro a caminho de alguma viagem para a praia, encalhadas no congestionamento de paulistas exaustos tentando aproveitar um pouco o salário que ganham nos outros dias do ano.

            Uau! Meu coração deu um pulo e está batendo tão forte que acho que deve dar para ouvir na mesa ao lado. Acabei de receber um e-mail de um agente de casting! É para um filme pequeno, mas é meu primeiro call back para um teste! Respondi na mesma hora e ele quer me ver às três ainda hoje, se eu conseguir driblar a neve. Claro que consigo driblar a neve, já driblei coisa muito pior para chegar a um ensaio em que só eu apareci! Cresci na Zona Leste, meu caro, eu chego aos lugares, não importa o quê. Ok, tenho que me preparar... Prometo que escrevo mais depois contando, tá bom? Torça por mim, você sempre foi meu amuleto da sorte!

Mil Beijos
Audrey


sexta-feira, 20 de abril de 2018

Trecho de Romance: Manhattan #1

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De: Audrey Priestly <audreypriestly@yahoo.com.br>
Para:
mhfs2000@uol.com.br
31 de janeiro de 2013, 12:23

Assunto: Manhattan

            Não consegui resistir. Tenho que escrever para você hoje. Está nevando! Nevando de verdade, como num cartão de Natal, como o final feliz de um filme romântico... Claro que esteve nevando o mês inteiro, floquinhos tão pequenos, que quase parecem chuva, daqueles que se desmancham em água assim que tocam o chão, deixando as  ruas todas enlameadas, cheias de poças e escorregadias. Janeiro em Nova York, como poderia ser diferente?
Mas essa noite nevou de verdade. Fui até a cozinha do apartamento tomar um copo de leite às 4:30 da manhã (acordei e não consegui dormir mais) e já estava claro. Vi a janelinha de vitrô branquíssima de neve! Enfiei um casaco e fui  até a porta do prédio, de pijama e tudo. A escada estava invisível debaixo da neve!
            Como uma cidade pode se transformar dessa forma do dia para a noite? Quase não tem carros na rua, acho que não devem conseguir dirigir. Na verdade, o único jeito de se locomover é o metrô, mas vi no site da CNN que algumas linhas não estão funcionando. E as escolas também estão sem aula! É como  um dia de enchente em São Paulo, ou de greve de ônibus, em que a gente ficava feliz pela cidade estar um caos.
            Não aguentei mais ficar no meu quarto minúsculo. Sabe, eu fiz as contas, e eu pago  proporcionalmente mais aqui do que por um apartamento de três quartos no Jardim Paulista. Em Washington Heights! Bem, é o que tenho. As asiáticas de quem alugo esse quartinho parecem ter aprendido um pouquinho mais de inglês desde que eu cheguei– era de se esperar, já que assistem reality shows o dia inteiro (sério, não consigo mais olhar para a cara da Kim Kardashian sem ter vontade de socar alguma coisa). Mas ainda só falam comigo quando eu inicio o diálogo, geralmente para perguntar se querem algo do mercado ou se também estão sem sinal de celular. A operadora delas é a mesma que a minha, então resposta para essa última é sempre interessada, mas para a segunda é sempre não. Assim mesmo: “Não.” E só. E um olharzinho instantâneo e chinês. Sem um obrigado. Acho que uma palavra universalmente conhecida é “thank you,” se é que existe uma, não? Elas também fumam alguma coisa que não  sei identificar. Os tipos de drogas que podem ser fumadas não foi uma coisa que eu posso dizer que aprendi na adolescência, acho que você fica feliz com isso não é? Mas todas as minhas coisas agora têm esse cheiro enjoativo também.
            É bom escrever em português um pouco. Desde que eu cheguei aqui acho que não falei uma palavra de português – o que já faz quase 6 semanas. Olha só! Estou até medindo o tempo em semanas, igual eles fazem aqui! Estou até sonhando em inglês!
É estranho, mas não sinto nenhuma falta do Brasil. Bom, não é muito estranho, na verdade. Acho que isso é bom, já que eu escolhi me mudar para cá, não é? Nos primeiros dias, a Luciana me mandava mensagens o tempo todo, mas depois parou. Ela está trabalhando muito e preparando o casamento, acho que não tem tempo. Mais ninguém tem se manifestado... Bom, o carnaval está chegando, todo mundo deve estar se preparando para viajar, ou planejando a agenda de blocos de rua, ou indo no ensaio da escola de samba. Argh... Carnaval... Mas eu também não estou fazendo nenhum esforço para falar com ninguém de casa e estou me sentindo um pouco culpada.
Acho que você não vai ficar muito satisfeita em saber, mas a Barbra também não tem falado comigo. Não desde... você sabe... Ela não foi muito a favor de eu me mudar, disse que era besteira minha, que eu devia arranjar um trabalho como professora de inglês e parar com essa história de atriz, que eu estava louca se achava que se eu não conseguia nada em São Paulo ia conseguir alguma coisa aqui. Mas ela mesma se mudou pra Brasília, não foi? Podia muito bem ser jornalista de política de outro lugar. Ela nunca entendeu a ligação que eu e você temos com o teatro e a música. Desde pequena, lembra?
            Bom, ela pode ter razão até certo ponto. Eu sei que é muito difícil... Mesmo assim... Simplesmente não pude continuar morando naquele apartamento. Não era possível.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Crônica: Biblioteconomia de Si


              No meu aniversário de um ano, meu avô era precursor: com sua magnífica câmera filmadora novíssima (de VHS, claro, lembrando que estamos na virada dos anos 80 para 9_ fez um super making of do meu dia de princesa. Por trás daqueles números branco brilhantes marcando a data e a hora (erradas, claro), minha mãe e minha avó me acordam (de mal humor, claro). Elas me põem no trocador e o único jeito de eu me animar para aparecer bem no filme é me mostrar um livrinho com figuras do Mickey Mouse e sua turma.
              A bebê cresceu uns vinte e uns anos e se tornou uma viciada em livros. A Victoria está sempre lendo. Todo mundo que me conhece sabe. E nesses vinte e uns anos foi uma coleção de livros acumulados que é melhor nem comentar. Resolvi organizá-los, o que jamais aconteceu na história deste país.



              Ordem alfabética? Por autor ou por título? Por gênero, é melhor. Vou dividir em “Clássicos”, “Teóricos” e “O Resto”. Ok... Shakespeare, Homero, Curso de Linguística Geral, Jogos Vorazes. Nabokov é clássico? Realmente preciso ler aquele livro do Coetzee sobre os clássicos... Aliás, CADÊ!? Achei, ufa... Nabokov é clássico. Ponto. Ish, ao lado da Simone de Beauvoir... Bom, dane-se. Virginia Woolf, Victor Hugo, Cervantes. Mein Kampf... Jesus Cristo onde eu classifico o livro do Hitler? É meio clássico, mas acho que Kafka ficaria ofendido. Vai pro Resto. Mas Primo Levi está no Resto! Não, não posso fazer isso! Tá, vai junto com os Teóricos, afinal, ninguém lê isso por prazer, só como um documento histórico. Ai meu Deus, Freud, Walter Benjamin, Philip Roth, ANNE FRANK!!!
              Ninguém mandou ter o livro do Hitler também, né. Mas percebem o problema? Vi uma vez em um filme um personagem que organizava os seus muitos livros partindo do princípio de quais teriam dormido com quais. Comecei a pensar como seria isso nos meus livros. Sartre e Simone juntinhos. Depois Clarice, que ia gostar da Simone. Cervantes e Flaubert – muito papo de travesseiro sobre Emma e o cavaleiro da Triste Figura. Capote com Benjamin! Isso ia dar um sexo selvagem. Game of Thrones... Gente, será que esse velho já pegou alguém na vida? Ah, Philippa Gregory! Uma pegada medieval. Marion Zimer-Bradley e Diana Gabaldon vão junto, podem fazer um grupal. Pensando bem, tira o Martin. As damas históricas merecem um cavalheiro à altura. Um autor bem gatão... Ish, não tenho nenhum do Nicholas Sparks. Bom, ainda bem! Anne Frank com Nabokov e Lewis Carroll um de cada lado. Ai, que maldade...  
E os teóricos como faz? Aaah, Saussure... Saussure, você vai ver...
              É divertido pensar nisso, mas não é prático. E imagina o tempo que eu ia demorar pra shipar minha biblioteca desde o livrinho do Mickey?! Não, categorias gerais e ordem alfabética, igual na Florestan lá na USP. Mas isso é tão chato... E se for por lidos e não lidos? Olha! O livro da minha colega do da faculdade! Preciso ler. E O Pintassilgo!!! Queria tanto reler...
              Esse último critério foi que me botou pra pensar. Relanceei para a pilha de lidos atrás de mim. Estava quase despencando. Meu Deus, quanto tempo da minha vida eu já gastei lendo isso tudo?! Bem, não gastei, ganhei. E esses todos não lidos do outro lado! Uma pilha quase tão grande. A impressão que tenho é de que, quanto mais eu leio, mas há para ler. É como uma hidra de hércules, já na fase Hard da luta.
              No meio de um monte de livros de sebo, encontrei Fahrenheit, de Ray Bradbury. Meu coração se apertou. E se queimassem tudo aquilo? É pior do que se queimassem minha casa, pior que se meu país entrasse em uma guerra civil sangrenta, pior que se eu fosse parar em um campo de concentração nazista. Queimar todos os meus livros seria queimar quem eu sou, quem eu fui e quem eu posso vir a ser em alguns anos.
              Classificar seus livros é como fazer análise: colocar cada coisa em seu  lugar, manusear os livros antigos cheio de orelhas que já sabe quase de cor, abrir or novos e esquecidos para ver se ainda têm aquele cheirinho de livraria, decidir o que fazer com aqueles menos favoritos que por algum motivo você ainda mantém - todas as experiências – sim, porque eu já estive em uma guerra civil, em um incêndio, em um campo de concentração nazista, até em Camelot e Westeros – é uma busca sem fim, um enredo quixotesco de perseguir um coelho branco que está sempre fugindo nas sombras estranhas do país de dentro de mim.
              No fim, coloquei todos misturados do jeito que estavam mesmo. Da próxima vez que for procurar um livro, vou fechar os olhos e deixar os dedos encontrarem a próxima experiência a viver ou reviver. A vocês, bibliófilos caóticos, eu entendo. Completamente.

sábado, 24 de março de 2018

Resenha: "Dias de Abandono", de Elena Ferrante


              Olga recebeu um “descurtir”. Mário deixou de seguir Olga. Mário saiu da conversa. Olga não tem notificações. Tem certeza de que deseja apagar as mensagens armazenadas desta conversa? Em “Dias de Abandono”, o que mais choca é a casualidade de um abandono impessoal, que deixa um vazio à frente, como se fosse tão simples quanto deletar uma pessoa de sua vida quanto o é de apaga-la das redes sociais.
              A protagonista Olga tem um relacionamento superficial com o marido Mário, duas personagens vastíssimas, como não poderia ser diferente, já que provém da mente da autora mistério, Elena Ferrante. A família feliz: marido, mulher, dois filhos, um pastor alemão que, se não fosse o livro dos anos 1990, teria um Instagram próprio. Ele é engenheiro, ela cuida da casa, mas quer mesmo ser escritora, embora não se sinta firme para fazer nenhuma das duas coisas. Desacreditada, competência desnecessária, e desresponsabilizada pelo mundo. Até o belo dia em que o marido, com quem sempre tivera uma relação de jogar os problemas para baixo do tapete, lhe comunica sem cerimônia que vai deixa-la. E em seguida vai brincar com o cachorro.
              Li a obra de Elena Ferrante de trás para a frente: comecei pelas amigas napolitanas que causaram estrondo em todo o mundo e recentemente voltei-me para os três romances anteriores, menos conhecidos e um tanto diferentes. Cada vez mais tenho certeza de que a italiana misteriosa não se trata de uma escritora feminista, rótulo que ela mesma recusa no volume mais recente que reúne suas cartas e poucas entrevistas concedidas. A autora é capaz de pinçar o ser mulher que todas compartilhamos. É por esse motivo a minha admiração: a ausência total de ideologia, ou panfletagem, ou relato de caso para encaixar-se em uma teoria de outro.
Olha essa capa, gente! Dá para sentir
o sofrimento só de olhar... Viajei?
              A voz de Ferrante tampouco é homogênea. Houve até boatos, já que sua identidade é oculta, sobre sua obra ser o esforço conjunto de não uma, mas várias pessoas. Não creio que seja o caso. É possível distinguir mecanismos e palavras de uma só pessoa em suas páginas. O que parecemos esquecer é que quem escreve não é Elena Ferrante, sim sua personagem, qualquer que seja o grau de similaridade entre elas. O pacto da ficção é firmado: essa história é fruto da imaginação desta mulher que assina a capa. Ponto final. Sendo cada livro um raio X de uma mulher drasticamente diferente, suas falas haveriam de o ser também, não?
              Voltando a Olga: essa mãe, filha e esposa se vê de repente caindo em um abismo, embora não haja precipício em que possa se atirar, nem trilhos de trem sobre os quais se prostrar para esperar ser dilacerada. A vida sem o marido a deixa pendente, como um vestido velho pendurado, esquecido no armário. Teme virar uma solteirona como aquelas da sua infância, teme esquecer a panela no fogo e explodir a casa com os filhos dentro, teme especialmente o cachorro, que foi aquisição do marido e agora também abandonado recai sobre ela. “Dias de Abandono” é um relato irretocável da confusão que se instaura na vida de uma mulher quando não tem um homem a que ser anexa, nem um modelo em que se inspirar para seguir. Eles, ao contrário, encontram outra para arrumá-lo, fazer sua comida, mimá-lo; trocam, como se diz de maneira infame, uma de 40 por duas de vinte, e seguem trabalhando, transando e delegando responsabilidades.
              Talvez este texto esteja contaminado com um pouco de ranço anti-masculino, mas a verdade é que Olga não conhece o marido. Ela escolhe ter uma visão embaçada dele, com as falhas obscurecidas. Ela pensa conhecer cada canto empoeirado de sua personalidade, mas nunca sequer sonhou com a possibilidade de uma amante. Interessante é que o tal marido só saiu de casa, abandonando os dois filhos (meros detalhes, formalidades chatas do divórcio) só quando já tem outra já engatilhada. Olga diz que nunca o amou tanto quanto no momento em que teve de desamá-lo, arrancá-lo de dentro de si como o duplo de um órgão vital.
              Talvez os rodopios da alma de Olga cansem um pouco ao leitor. Mas eles cansam até a ela mesma, que não consegue executar tarefas simples como destrancar a porta porque se distrai em meio ao rodamoinho que a puxa para dentro de si. Ela pede à filha que a espete com o abridor de cartas toda vez que achar que ela está “meio boba”. As piruetas da consciência que relatam ao leitor sua história pregressa, suas lembranças de vários pontos no tempo, fantasias, espécies de alucinações com a vizinha da infância, com a mãe, com o cachorro, com o vizinho de agora... e de repente o espeto do abridor de cartas! Tudo dá uma sensação de sufocamento, de estar presa em um buraco alto demais para se alcançar a borda, estreito, onde mal dá para se mexer.
              Um livro mais intimista e com menos elaborações peripatéticas que a média da autora – a tetralogia Napolitana chegou a ser chamada de “folhetim” por alguns críticos – mas fascina da mesma forma. Acho que um homem poderia não compreender como tanta coisa pode caber em uma só pessoa. Tantas dúvidas, tantas personalidades, tantas loucuras, tantos sentimentos flutuantes e nem por isso menos apaixonados. Mas, na crista da nova onda feminista, nós, mulheres, entendemos completamente.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Resenha: "Suicidas", de Raphael Montes


Quem realiza qualquer atividade coisa que exija a provação dos outros, sabe o furacão de sentimentos animais que a rejeição traz. Demos nosso sangue por aquela criação e o que recebemos de volta é uma resposta padronizada, atestando nossa incompetência. Vestibular, esportes, defesas de tese, performances artísticas... escrever um livro. Tantos escritores já compuseram textos sobre escritores rejeitados, muitas vezes alteregos de si mesmos – o Dedallus de James Joyce, Hakolnikhov, de Dostoiévsky, Lucien Rubenpres de Rubempré, de Balzac, e até o protagonista de O Iluminado, de Stephen King (vê-se que nenhum deu muito certo na vida, naõ é?). Poucos romances policiais com muito sangue, vísceras e suspense pensaram em abordar essa questão de forma central.


"Suicidas ( "2012), romance de estreia do carioca Raphael Montes, contém uma trama inicialmente sem profundidade: nove adolescentes, por motivos nebulosos, decidem cometer um suicídio coletivo em um jogo de Roleta Russa. Esta consiste em colocar uma só bala no tambor de um revólver e girá-lo, de forma que ninguém saiba em que puxar de gatilho a bala sairá. Mas aos poucos, conforme os detalhes dos motivos de cada um para acabar com a vida vão se delineando, revelam-se uma trama intrincada e uma série de temas contemporâneos, como, além do suicídio, a doença mental, tráfico de drogas, corrupção, homossexualidade, o comportamento alienado e inconsequente da classe mais alta do Brasil, abuso de mulheres e, como dito, a dificuldade de ser autor em um país de analfabetos.

Talvez um tanto inverossímil em alguns pontos em diversos aspectos da narrativa, para quem gosta de se deixar consumir por uma trama de mistério, liberada em pequenas doses para um leitor faminto, Suicidas é o companheiro ideal.

O que mais chama a atenção no livro é o tema que está nas entrelinhas, que é a composição da ficção a partir da vida real e nossa crença absoluta nessa narrativa. O documento (o próprio livro) supostamente produzido durante o jogo de suicídios pelo protagonista é muito pouco crível. Mesmo para os mais praticados em técnicas taquigráficas, é impossível transcrever à mão uma cena de luta e bate-bocas inflamados como ele faz, mas a investigação parece tomar esse testemunho produzido por um escritor de ficção como o registro mais exato possível do que aconteceu no ambiente fechado que os amigos escolheram para se matarem. É claro que, como um bom romance de suspense/policial deve preconizar, a verdade é bem diferente.

A midiatização da vida, sobre a qual temos visto tanto, é central, desde a cobertura invasiva da vida dos poderosos da Zona Sul carioca, passando por filmagens de suicídios que circulam pela internet, até casos em que a persona do autor e sua vida concreta têm mais importância para seu sucesso editorial que sua habilidade estética e narrativa. Basta armar um número pirotécnico para vender livros, é claro! Se está na mídia, as pessoas compram. A trama faz lembrar muito o caso do garoto suposto profeta da região norte que forjou o próprio desaparecimento em 2017, deixando caderno se mensagens codificadas de forma infantil escritos nas paredes de seu quarto com suas filosofias de vida capengas e pseudocientíficas. E ele vendeu muitos livros, podem acreditar. 

Abordando os pontos que parecem um pouco desajeitados no livro, ressalta-se a linguagem coloquial um pouco desengonçada e a falta de complexidade de algumas personagens. São aspectos que comprometem o valor como obra literária, mas não a aura em que o romance policial é capaz de nos envolver – no meu caso, consumiu-me um dia e uma madrugada. Para quem procura se entreter e um bom desencadeador de reflexões sobre a midiatização da vida, anomia social dos tempos contemporâneos e as lacunas psicológicas dos jovens da era da revolução digital, "Suicidas" é uma boa pedida.




sábado, 3 de fevereiro de 2018

Letting it Go - Uma cronologia das princisas Disney segundo o feminismo

Hoje, são poucas as famílias que ainda conservam aquele hábito de contar histórias para as crianças. Esse ritual foi substituído pela reunião em volta da TV, que se tornou a principal responsável por transmitir valores e padrões de comportamento aos adultos de amanhã. E quem melhor que Walt Disney para fazer isso?
Mesmo que muitos ressaltem o caráter comercial e americanizante das produções Disney, suas adaptações de contos maravilhosos clássicos para as crianças de sua época nada mais fazem que seguir a tradição dos Irmãos Grimm, que também transpunham histórias medievais para seu contexto histórico-cultural. E, além disso, não dá para negar a influência que a Disney tem na sociedade ocidental contemporânea.
E não é de hoje: minha avó, do alto de seus 76 anos, adora contar sobre a primeira vez em que assistiu “Branca de Neve e os Sete Anões” (no cinema) e quis ser igualzinha à primeira princesa do primeiro longa de animação da história. Quem diria que, meio século depois, sua neta se sentiria da mesma forma.
Quem nunca quis ser um personagem de ficção quando criança? Cada um tem seu preferido e, como religião e futebol, isso não se discute. São esses ídolos que modelam quem viremos a ser no futuro, pois é neles que nos espelhamos: é com eles que aprendemos a ser seres humanos vivendo em sociedade. 
Questões da comercialidade da marca à parte, comecei a pensar no quanto as princesas da Disney reproduzem a posição social da mulher em sua época, a qual deve ser transmitida às meninas da próxima geração. É gritante a diferença entre Branca de Neve, a primeira, e Elsa, do filme “Frozen”, de 2013. Tentei analisá-las cronologicamente (e também seus amados príncipes), considerando esse ponto de vista. Eis o resultado:

1937: “Branca de Neve e os Sete Anões”. A primeira e a mais submissa de todas as princesas. É boa, brinca com os animaizinhos da floresta, canta feito um passarinho, obediente, faz serviço de casa (obrigada pela Rainha Má ou não, já que a primeira coisa que faz na casa dos anões é uma faxina) e não se aproxima dos homens (vide cena em que o príncipe aparece e Branca de Neve foge feito um bichinho assustado). Ela não contribui em nada para a resolução do nó na história. É a vítima passiva das circunstâncias, ingênua e facilmente enganada. Quem salva o dia: o caçador, os anões e o príncipe – homens.  

1950: “Cinderela”.  É a favorita de muita gente, mas também faz faxina e sofre nas mãos da madrasta e irmãs. A diferença é que a Gata Borralheira é esperta o suficiente para seguir as orientações da Fada Madrinha e realizar seu sonho (mesmo que este seja dançar com o príncipe). Passa as outras para trás, com a ajuda de seus amigos ratinhos, cachorros, galinhas e serviço completo, consegue experimentar o sapatinho de cristal e se casar com o cobiçado príncipe. E, diga-se de passagem, esse príncipe é tão “zero à esquerda”, que nem nome tem e só aparece em uma ou duas cenas.

1959: “A Bela Adormecida”. Apesar desse ser um dos desenhos da Disney que acho mais bonitos, especialmente devido à trilha sonora tirada do balé de Tchaikovsky, a ideologia não é lá essas coisas. Regredimos à princesa indefesa. Aurora é criada de maneira superprotetora (compreensível) e se apaixona pelo primeiro desconhecido que vê na estrada. Tudo bem que ele é o Príncipe Felipe (cof cof), mas não vamos questionar a razão de ser dos contos de fadas. Aurora sofre com seu destino: um casamento arranjado depois de desobedecer as ordens de não falar com estranhos. Só não sabe que o marido é justamente o bonitão do bosque, o que teria evitado muito drama. Ela não é, por isso, totalmente passiva, mas apenas a vítima de circunstâncias fora de seu poder. Quem resolve a história é, principalmente, o Príncipe Felipe, que é o primeiro príncipe encantado a ter um nome (aplausos!!!), e as três fadinhas. Muito parecido com Branca de Neve, não?





Estes três filmes formam uma primeira fase dos contos de fadas, já que o próximo demoraria 30 anos para ser lançado. Neles, o que está em jogo é a libertação de uma condição humilhante, não especificamente o amor. No contexto da primeira metade do século XX, o casamento era a maneira mais fácil para a mulher se libertar da proteção dos pais e se tornar adulta. Hoje, essa mensagem não é muito bem-vista, mas não é possível dizer que os filmes sejam pouco saudáveis, já que a mensagem da luta por liberdade está lá, mesmo que sob uma ideologia desatualizada.  

1989: “A Pequena Sereia”. Incrivelmente, quase no fim do século XX, a ideologia continua muito parecida. Acho que o trecho a seguir, dito pela bruxa-polvo, Úrsula (a melhor vilã da Disney, na minha opinião) ilustra bem o que quero dizer:  



Tem razão, mas terá o seu homem. A vida é cheia de escolhas difíceis, não é? (...) Você terá sua aparência, seu belo rosto. E não subestime a linguagem do corpo! O homem abomina tagarelas, garota caladinha ele adora! Se a mulher fica falando, o dia inteiro fofocando, o homem se zanga, diz adeus e vai embora.. Não! Não vai querer jogar conversa fora?! É o que o homem faz de tudo para evitar! Sabe quem é mais querida? A garota retraída. E só as mais quietinhas vão casar!


Oi?! E a garota cai nessa?! A perda da voz da mulher – ainda mais uma sereia, figura mitológica que seduz justamente pela voz – é claramente a perda de seu poder, sua ascensão, seu livre arbítrio. Ok, no final ela conseguiu o que queria (o bofe e o mundo com que tanto sonhava), mas só porque seu pai, não acostumado a ver a filha mimada se frustrar, a transforma em humana. Mérito nenhum à sereiazinha “aborrescente”. Ah, e para compensar pelo menos, a representação masculina no filme é ótima! Ao contrário da sua amada inconsequente, Erick toma atitudes com a cabeça e, no fim, tem grande papel na resolução da história.

1991: “Aladdin”. O protagonista agora não é mulher, mas, ao contrário de ser vítima das circunstâncias e só fazer bobagens, Jasmim é bem esperta! Ela questiona o casamento arranjado e chega a fugir de casa para conhecer o mundo. Ela ajuda a salvar o dia e, assim como Aladdin, é uma heroína da astúcia, não da força. Uma coisa que me chama a atenção é que, sendo esta a primeira princesa da Disney a se mostrar um pouco mais emancipada e forte, o cenário do filme remete à cultura muçulmana, tradicionalmente conhecida por tratar as mulheres como inferiores.

Obs.: A partir daqui, ninguém mais limpa o chão nem passa os dias se embonecando!


1992: “A Bela e a Fera”. Agora sim! Bela é a primeira princesa nerd! Adora ler, cuida do pai e rejeita o bonitão da cidade para se apaixonar pela Fera - monstruosa, sim, mas com um enorme coração. Este é o primeiro filme que mostra um amor adulto, algo que se constrói, não que acontece da noite para o dia, algo que possibilita o crescimento de ambas as partes. Para completar, Bela é quem salva primeiro seu pai, depois a Fera. Tudo bem que ela se mete em encrenca ao tentar fugir e precisa ser salva pela Fera, mas a Disney não podia fazer um protagonista masculino assim tão inútil, não é? Tudo bem ser salva pelo macho uma vez ou outra, fica até mais romântico!
 Esse é meu filme favorito da Disney de todos os tempos! Uma arte linda, uma trilha sonora inigualável e a história mais cativante que já houve.

1994: “Rei Leão”. Novamente, a princesa-leão não é protagonista, mas, como são animais, Nala está de igual para igual com Simba. E, de fato, entre os leões, quem caça são as fêmeas! Nala nunca é comentada como um símbolo de emancipação feminina como outras personagens da Disney, mas a personificação dos animais permitiu essa representação no filme.

1995: “Pocahontas”. É uma história verídica (como mostrado no filme “Novo Mundo”) e bastante parecida com a nossa “Iracema”. Pocahontas é tudo o que Ariel deveria ser. Ela também vive no mundo da Lua e não se encaixa entre os seus, mas, quando se apaixona por alguém pertencente a outro universo, tem consciência de que é um amor impossível e, ao em vez de escolher entre um lado ou o outro, tenta conciliar os dois e acaba, à curto prazo, conseguindo. (Considerando apenas a metade da história mostrada pela Disney, pois a versão realista é bem diferente). Aqui também o amor não é à primeira vista. O que acontece é mais um fascínio pelo desconhecido, em que um ensina o outro e ambos vencem seus preconceitos.  


1998: “Mulan”. Ela é mulher, mas, não conformada com isso, faz tudo que um homem faz também! Muito como Bela, sacrifica-se pelo pai e, com sua esperteza, acaba salvando o país. Tudo isso em uma sociedade muito repressora. Mulan é a Khaleesi das Princesas Disney! (E não é só porque também tem um mascote dragão, claro.)
O esse revestimento de masculinidade dessa mulher (porque ela não é princesa) representa a libertação total feminina, que, daqui em diante, pode ser e fazer o que quiser, até mesmo coisas de homem, e continuar sendo feminina.  

2009: “A Princesa e o Sapo”. Dez anos depois, vem a primeira princesa negra da Disney! Afinal, já estava na hora! Este é o primeiro filme também a se situar na realidade contemporânea. Para mim, talvez, o filme perca um pouco da magia exatamente por isso: é direto ao ponto demais. Tiana é uma garota urbana, trabalhadora e durona. Não é princesa de fato, mas se veste como uma para uma festa à fantasia a que não queria ir. Só então começa a magia no filme: quando encontra o sapo falante e acaba sendo também transformada em uma sapa. Tiana não sonha com o príncipe (ao contrário de sua amiga branca, rica e infantil); sonha, sim, com o seu  restaurante e acaba esbarrando com o príncipe no meio do caminho - um príncipe que nem é tão príncipe assim, diga-se de passagem. Mais ou menos como em “A Bela e a Fera”, eles amadurecem um com o outro e acabam se apaixonando mesmo como sapos. A moral da história: não adianta construir a sua vida entorno do príncipe encantado, porque ele pode acabar sendo mesmo só um sapo. Mas, por outro lado, não se deixe levar pelo trabalho e as pressões do mundo, pois, apesar de tudo, o amor existe, afinal, como Tom Jobim já dizia: “É impossível ser feliz sozinho.”

Com “A Princesa e o Sapo” encerra-se uma segunda fase, que gosto de pensar como a dos filmes de Allan Menken (o compositor das trilhas sonoras de todos os filmes anteriores a partir da “Pequena Sereia”). São personagens e contextos muito variados, mas, tirando o filme de 1989, é possível perceber princesas mais contestadoras, inteligentes e fortes, além do fato de, desde “A Bela Adormecida” ninguém mais passar horas se embonecando ou fazer serviço de casa. Os príncipes, os modelos de objeto de atração para as garotas, também estão mais parecidos com pessoas de verdade, não com figuras idealizadas; alguém com quem se pode crescer, aprender e melhorar.
Passemos à nova fase da Disney que está se saindo melhor que a encomenda:

2010: “Enrolados”. O primeiro filme da nova linha de desenhos Disney, com uma técnica maravilhosa e retornando aos contos de fadas clássicos. A história de Rapunzel é, obviamente, outra de libertação, e ela é, com certeza, a princesa mais desmiolada de toda a Disney (o que é, diferente de Ariel, justificado, já que viveu toda a vida em uma torre). Mas o casal desajeitado e pouco provável devolve a magia à história. Rapunzel não busca um príncipe, sim um sonho: conhecer o mundo. Aqui, outra vez, repete-se a relação de complementação do casal, não de submissão. Flyn salva Rapunzel, Rapunzel salva Flyn e eles acabam se apaixonando no final, mesmo que Flyn não goste desse tipo de coisa clichê.


2013: “Frozen”. Chegamos ao ápice da emancipação feminina nas produções da Disney. O amor – aquele bom e velho "verdadeiro amor"–  em Frozen não é entre um homem e uma mulher, sim aquele entre duas irmãs – o mais relevante, ao menos. Além disso, temos duas personagens femininas fortes: uma princesa e, pela primeira vez, uma rainha! Elsa tem dificuldade para se aproximar das pessoas, o que é lindamente representado pelos seus poderes de gelo. Ela se sente só, diferente de todos os outros  Anna, a garota totalmente comum, sonhadora e desajeitada (ela cai o filme inteiro!), não entende a irmã e também se sente só, até que se apaixona à la Branca de Neve. No fim, acaba que o príncipe encantado é o vilão e Anna acaba se apaixonando por Christoph, o garoto simples com quem trilha sua jornada (novamente, o amor construído). E temos aí a cena mais significativa de todas, que me inspirou a escrever este texto: Anna é quem beija Christoph nos momentos finais!!! Quer mais libertação que isso?! Já Elsa atinge sua felicidade por meio do entendimento com a irmã, não pelo amor por um homem. Não significa que ela não o queira, mas que não é necessário para que seja uma pessoa estável e realizada. Este filme fala sobre solidão. Todos os personagens principais são muito solitários e têm dificuldade para mudar essa situação.

Nesta terceira fase ainda em curso, as mulheres estão longe de serem perfeitas e também se apaixonam por homens longe de serem perfeitos (Flyn, um criminoso procurado, e Christoph, um garoto criado por trolls que anda por aí com sua rena de estimação). Para mim, esta é uma mensagem muito saudável para se passar às crianças, isto é: você não precisa ser perfeito para ser feliz, porque, afinal, o que é perfeito nessa vida?